23.10.08




E assim, caramba!, passou-se um ano

Exatamente ontem, há um ano atrás, vi uma foto irresistível da janela de um prédio na Presidente Vargas. A tarde caía e uma vaga bruma (que provavelmente era poluição) ressaltava os raios de sol que iluminavam a Candelária em poética diagonal. Não tive paciência para esperar pelo elevador. Desci os cinco lances de escada e parei um minutinho na calçada esperando o sinal fechar. A foto não chegou a ser feita. Antes que eu chegasse ao outro lado da rua, uma moto surgida do nada me atirou longe, transformando em farelo de osso o que, uma fração de segundo antes, era um joelho em perfeito estado de funcionamento. A minha vida nunca mais foi a mesma.

Imaginem que, até aquele momento, eu era tão inocente em fraturas que achava que ia passar umas duas ou três semanas com um gesso na perna, e logo voltaria, lépida e fagueira, aos meus afazeres! Ainda espichada na maca do Copa D'Or, perguntei ao dr. João Matheus Guimarães se, dali a duas semanas, eu poderia ir a Florianópolis, onde tinha um compromisso profissional. Ele me olhou com um misto de pena e de espanto, como quem olha para um ET que quer telefonar para casa via Telemar. Tenho a impressão de que ficou na dúvida se aquela pergunta descabida era efeito da morfina ou de alguma pancada não registrada na cabeça. Aliás, tenho a impressão, não: tenho certeza. Logo depois me mandaram para mais uma batelada de exames.

No dia seguinte, fui operada. O dr. João Matheus, que deve ser uma fera na solução de quebra-cabeças, conseguiu juntar todos os caquinhos de joelho. Tascou uma placa de um lado, outra do outro, e atarraxou uns parafusos pelo meio. Quando vi pela primeira vez o raio-X, que lembra uma Torre Eiffel pós-moderna de cabeça para baixo, achei que nunca mais passaria por um detector de metais sem apitar. Mas, respondendo à curiosidade de muitos amigos, informo: não, não apito.

* * *

Olhando daqui, de outubro de 2008, um ano passa rápido demais. Olhando do outro lado, de outubro de 2007, os dias pareciam não acabar nunca. Durante alguns meses anotei numa caderneta o número de passos que dava com as muletas: cinco passos até o banheiro, cinco passos até a cama, quinze passos para a sala (onde passava o dia estirada no sofá), seis passos até o banheiro... Cada passo doía mais do que o outro e cada noite era mais comprida do que a anterior. A sensação que eu tinha é que não estava melhorando nada, nada, nada — e ir dormir trazia implícito o desespero de acordar para um dia seguinte exatamente igual. Uma tortura verdadeira.

Pouco a pouco, passo a passo, quase imperceptivelmente, graças à tenacidade de duas moças bonitas, firmes e competentes chamadas Bianca Chalom e Flávia Macedo — as duas fisioterapeutas a quem coube a árdua tarefa de fazer com que eu me mexesse — as coisas foram melhorando. Um dia, larguei o andador. Depois, larguei também uma das muletas; logo, a outra. Quando dei por mim, estava andando novamente, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.

Esquisita essa constatação, não é mesmo? Mas a verdade é que quando a gente se quebra a ponto de ter de reaprender os mínimos movimentos, deixam de existir mínimos movimentos. Todos os movimentos, sem exceção, passam a ser vastos, surpreendentes. Assim é que, em troca de algumas cicatrizes, placas e parafusos, ganhei a consciência do milagre da locomoção.

Não é uma troca que se possa definir como vantajosa ou como, sei lá, uma súbita iluminação; mas não há dúvida de que o que acontece aos ossos afeta a alma. Não recomendo o sofrimento físico como terapia de autoconhecimento, ainda que reconheça suas virtudes didáticas. Através dele mudei a minha percepção do tempo, redefini prioridades, descobri as fronteiras dos meus nervos e tendões. Já acontece de, às vezes, distraída, eu me levantar e sair andando sem perceber, como antes; mas até nisso reparo, poucos passos depois, cheia de surpresa.

Ainda tenho dificuldade para subir e descer escadas, e não consigo andar mais de seis ou sete quilômetros sem que o joelho proteste. Mas já voltei a andar de bicicleta e a Heliana, amiga querida que tanto fez por mim, está tentando me convencer a surfar. Estou quase topando. Por enquanto, o único obstáculo é que, ao nascer do sol, quando ela e seus colegas de prancha tomam o rumo da praia, eu estou, em geral, desligando o computador e tomando o rumo da cama. Certos hábitos, afinal, não há joelhaço que mude.

* * *

Semana passada, perguntei aos nossos candidatos a prefeito quais são seus planos em relação aos animais de rua, cada vez mais maltratados no Rio. Não recebi resposta alguma do candidato Eduardo Paes, mas Neila Tavares, mulher de Fernando Gabeira, me telefonou em nome do marido. Conversamos longamente, e garanto que gostei do que ouvi, sobretudo da preocupação com os cavalos abandonados. Não chegou a ser surpresa, sendo Gabeira candidato pelo Partido Verde. Ao saber que o casal vive com duas lindas e legítimas gatinhas de rua, os gatos lá de casa sorriram, muito felizes.

(O Globo, Segundo Caderno, 23.10.2008)

Nenhum comentário: