30.10.08


(Foto da Heliana)

Execuções em surdina

Crônica de várias mortes anunciadas

Há algumas semanas, mencionei a situação calamitosa do Parque Lage, onde, neste momento, há uma mortandade de micos em curso. Suspeita-se de epidemia de herpes, altamente transmissível através da comida que “roubam” de humanos. O verbo está entre aspas porque, ainda que configure uma imagem pitoresca, que se perpetua através de declarações equivocadas de autoridades, não corresponde à verdade.

Não estamos falando de macaquinhos engraçadinhos e bem alimentados que fazem estrepulias; estamos falando de animais desnutridos, doentes e desesperados, que não encontram mais nas árvores o alimento outrora abundante. E não encontram porque as jaqueiras centenárias do parque vêm sendo assassinadas por anelamento, a marca de administradores covardes a quem falta coragem para enfrentar a opinião pública de machado ou moto-serra em punho. Quem, então, está roubando quem?

Por trás dos crimes há uma lógica perversa, que condena as jaqueiras por não serem árvores nativas e por ocuparem o espaço da flora autóctone. Ora, para começo de conversa, o Parque Lage, tal como o conhecemos, não tem nada de autóctone: é um jardim exótico, plantado de acordo com os caprichos do antigo proprietário. Não apenas isso, mas também um jardim tombado, no bom sentido da palavra. Se formos pôr abaixo todas as plantas exóticas do Rio, que tal começar pelo Jardim Botânico, logo ali ao lado? Daria um estacionamento que só vendo.

Além disso, por prolíficas que sejam as jaqueiras, não posso acreditar que seja através da execução em massa de árvores adultas que se faça reflorestamento; muito menos através do anelamento, um corte cruel em torno do tronco que mata a planta de fome, lentamente. Enquanto agoniza, a árvore assim ferida fica mais frágil e suscetível a toda espécie de pragas –- que, por sua vez, podem se espalhar por outras plantas e destruir áreas inteiras de florestas.

Para o IBAMA, o assassinato sistemático dessas antigas e belas árvores frutíferas atende pelo nome de “manejo”.

* * *

Enquanto as jaqueiras morrem no arvoricídio promovido pelo governo, o resto do Parque Lage mal e mal se sustenta. E, ainda assim, graças ao admirável trabalho voluntário de cariocas que de fato amam a natureza e a sua cidade. Há alguns dias, Elizabeth Mota, leitora do blog, manifestou preocupação com uma tilápia que viu no aquário. “O que é aquele minúsculo pseudo aquário enfurnado dentro daquela gruta? Mal dá espaço para os peixes maiores se mexerem. A tilápia parece falar com você através do vidro: Socorro! Tirem-me daqui!"

Recebeu, prontamente, resposta do técnico em aquariofilia Fernando Murta, sem o qual já não haveria um único peixe por lá:

"Parabenizo a sra. Elizabeth Mota pela sua preocupação com a Tilápia do Parque Lage. Não precisa se preocupar, pois o tamanho do aquário onde a mesma se encontra é mais do que adequado. Esse peixe tem 30cm de comprimento e o seu tanque tem três metros de comprimento por 70cm de largura. Devido a um efeito de ilusão de ótica, as janelas de vidro dos aquários sendo pequenas dão a impressão de que os tanques são menores do que aparentam.

Essa Tilápia tem uma história interessante. Foi salva por mim quando a encontrei presa no tanque da chamada "Lavanderia dos Escravos" no Parque Lage. O seu destino era a morte certa, ou pescada por alguém ou levada pela correnteza em direção à Lagoa Rodrigo de Freitas, que recebe toda a água dos lagos do Parque Lage. Como estava disponível um tanque grande no Aquário eu a coloquei lá e é onde vive em segurança já há cinco anos.

Informo também à sra. Elizabeth que a Tilápia, peixe da família dos Ciclídeos, é extremamente agressiva e tem o hábito de se movimentar frenéticamente em frente ao vidro do seu tanque. Para ser mais exato, a Tilápia não está pedindo socorro e nem querendo ser levada embora. É do seu instinto que, apesar de bem alimentada, acredite que as pessoas que a observam penalizadas sejam apenas um bom petisco.

Quanto ao "minúsculo pseudo aquário" citado pela Sra. Elizabeth, trata-se de uma construção tombada pelo IPHAN e feita em 1927 por Henrique Lage para a sua residência particular, hoje um parque público. Possui 12 tanques com 17 janelas e 20 mil litros de água. No momento, este, que é o único aquário público da Zona Sul do Rio de Janeiro, encontra-se sem verba pública, e vem sendo mantido por voluntariado, com extrema dificuldade.”

Achei que vocês gostariam de saber dessa história. Não é qualquer cidade que tem Tilápia com “T” maiúsculo e biografia, nem qualquer aquário que tem a felicidade de ter um Fernando Murta como anjo da guarda.

* * *

A foto que ilustra esta crônica foi feita na segunda-feira, dia 27, por Heliana Laura Oliveira, sócia do Flamengo que, na saída da piscina, fotografou outro sócio, o deputado Fernando Gabeira. Apenas um homem comum, um homem de bem, em paz com a sua consciência. Um homem que não precisou fazer alianças com bandidos nem rastejar pela lama de uma campanha imunda para despertar o entusiasmo dos eleitores.

Um vencedor.


(O Globo, Segundo Caderno, 30.11.2008)

Update: A Flavia Tavares tem uma página no Multiply onde o arvoricídio está bem documentado.

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