9.10.08



Diálogos de viagem

Uma das grandes vantagens de ter blog é que só se está sozinho quando se quer. Acho que foi por isso, por essa sensação de companhia eletiva, que o meu blog, que nasceu em 2001 como um caderno de anotações tecnológicas, virou, com o tempo, uma espécie de Querido Diário, onde, sempre que viajo, documento as etapas do percurso em tempo real. Faço isso através de fotos que tiro e envio com o celular; o resultado é que, numa fração de segundo, quem estiver de passagem pelo blog acaba ao meu lado, onde quer que eu esteja. Às vezes a comida ainda está quente no prato, e já há comentários sobre o restaurante, a receita e a quantidade de calorias de cada garfada. Vivo, com isso, o melhor de dois mundos: tenho a liberdade absoluta que tanto amo, sem levar a solidão de contrapeso.

Agora mesmo, nas férias, mesmo acompanhada pela família e por amigos, a turma do blog deu um tempero todo especial às aventuras nova-iorquinas. Um dia, lá fui eu com a Bia, torrar despreocupadamente alguns dólares. O mundo estava à beira do precipício, mas, como o presidente Lula, nós achávamos que o problema não era nosso; e enquanto a Bia escolhia uns bronzers e uns batons, eu escolhia um cantinho discreto para fotografar a criatura aí ao lado. Sei que hoje em dia cabelo azul é muito normal, mas ainda sou do tempo em que esse tom, se me permitem a expressão, causava espécie.

Como a maioria das fotos roubadas e feitas às pressas, especialmente com celular, esta também ficou uma bobagem, mas justificou plenamente sua existência quando, na volta para casa, dei com um comentário da Matilda Pena, de Salvador, que tem sempre a oração certa para toda e qualquer emergência:

“Senhor, me poupe da visão de cabelos horríveis, principalmente dos azulados como dia de quase começo de primavera em cabeças não tão jovens, me poupe deles, Senhor, porque hoje é sábado e certas visões pela tarde podem me enfartar.

Senhor, me poupe da visão de roupas apertadas, principalmente das pretas como noites sem luar de quase começo de primavera em corpos não tão magros, me poupe delas, Senhor, porque hoje é sábado e certas visões pela tarde podem me traumatizar.

Senhor, me poupe da visão de saias curtas sem noção, principalmente das tortas no corpo como jaqueiras plantadas nos descampados plenos do vento de quase começo de primavera, me poupe delas, Senhor, porque hoje é sábado e certas visões pela tarde podem me fazer descrer na humanidade.

E obrigada, Senhor, pela grande lição, eu acordei hoje me achando um bucho, mas o senhor me mostrou, de modo traumatizante, mas mostrou, que eu sou normal, Senhor, que eu tenho simancol, Senhor, que eu tenho espelho, Senhor, obrigada por isso, Senhor, continue cuidando de mim para que eu nunca perca isso, Senhor, amém!"

* * *

Pouco depois de dar gargalhadas com a Matilda, quase me desmancho com a Lúcia Latorre. Uma vez publiquei a foto que a Bia fez de uma casinha de madeira no Paraná; pobre, humilde, mas estalando de limpa. Em cada detalhe se notava amor, capricho e dignidade. Pois a Lúcia, que nasceu e cresceu numa casinha igual, e que na época ficou muito tocada com a foto, me escreveu, então, para falar da sua infância e do sonho de viver numa casa de alvenaria. O texto era tão bonito que não resisti, e acabei publicando-o aqui também. Pois vejam o que ela escreveu dessa vez:

“Pela primeira vez, acompanho uma viagem sua e sei do que você está falando. Pois é, eu também estive em Nova York. Em maio, eu e minha filha, depois de um ano de muita, muita economia, nos aventuramos. Primeiro Cancun, numa daquelas excursões, depois Nova York, sozinhas. Sem espikar nadinha, nós nos aventuramos, alugamos um quarto na 86, e saímos a desbaratar a cidade. Fizemos o roteiro direitinho; vejo agora pela sua viagem. Museu de História Natural, Metropolitan, Moma, O Rei Leão, Marco Zero, Estátua, Museu do Imigrante, Central Park, Dakota, e outros tantos. Ficamos 11 dias e foram dias muito felizes.

Acredita que eu, que vim lá daquela casinha de madeira, de repente estava comprando Lancôme e Mac na Saks e na Bloomingdale? Imagina o que seja isso? Sabe que todos os dias eu tomava café da manhã com os pés na janela, admirando o Rio Hudson? E eu ficava tão feliz.

Desde 2005 que leio seu blog. Suas viagens é que me inspiraram. Antes, nunca tive coragem de viajar. Mas você viajava, mostrava fotos dos lugares, as pessoas comentavam, conheciam, fui garrando um ódio de não conhecer nada, fui garrando uma birra de ser tão ignorante.

Tou curtindo pela segunda vez Nova York, agora através da sua viagem. Fico esperando você postar, agora eu sei, conheço, você que viajou tanto não faz idéia do que isso significa, parece que eu aprendi a ler. Porque agora eu leio com outros olhos. Obrigada, viu, Cora."

Fiquei comovida demais. Porque imagino, sim, o que seja ir da casinha modesta até Nova York; porque a Lúcia não só foi feliz como soube perceber que era feliz e curtiu o momento; e, lógico, pela parte que me atribuiu e pela linda analogia que fez com a leitura.

É verdade, viajo muito. Mas em todos esses anos e em todas essas viagens, nunca deixei, uma vez sequer, de agradecer à minha boa estrela. Cada vez que piso num aeroporto, cada vez que entro num avião, cada vez que respiro o ar de uma cidade diferente, fico arrepiada, pensando no que foi que eu fiz para merecer tanto.

Espero morrer sem perder esse encantamento -- que tenho com tudo, e que é, no fundo, a essência da felicidade.


(O Globo, Segundo Caderno, 9.10.2008)

Nenhum comentário: