14.5.08


Tenho dez celulares e o
sentimento do mundo


O Dia das Mães veio e passou, com sua quantidade de anúncios, folhetinhos, encartes, promoções, outdoors, capas de revista e filas em restaurantes. Como todo mundo, eu também enjoei dessa overdose anual de exaltação à maternidade e às vendas. Mães são mães, filhos, filhos, e não há muito que uma data comercial possa acrescentar ou subtrair a fato tão simples, exceto pelo aspecto negativo de amplificar ausências, sublinhar carências e relembrar às famílias desconjuntadas a sua desconjuntação. De resto, menos um domingo no calendário.

Mas será esse consumo desenfreado a única alternativa evolucionária do ser humano? Será que o nosso caminho natural, da aurora dos tempos ao fim da espécie, passa, necessariamente, pelas Casas Bahia? Há menos intenção crítica de minha parte do que curiosidade antropológica na questão. Criticar o consumismo é chover no molhado, e é, de certa maneira, rejeitar a própria condição humana, já que parte ponderável do nosso tempo e da nossa energia são gastos com o consumo. Isso não impede que eu considere uma das grandes tragédias da nossa época a apresentação do consumismo como cura para todos os males; mas essa é outra história.

O que me intriga é 1) o que faria o ser humano se não consumisse; e 2) onde ficam as fronteiras do consumo estritamente necessário para saber o que seria um hipotético humano não-consumista. E não, não adianta olhar para qualquer ponto de miséria extrema do planeta para obter a resposta, porque ela nunca está nos extremos. O que faria hoje um bípede médio em circunstâncias médias se, em algum momento ao longo dos últimos dois milhões de anos, nós não tivéssemos nos afastado dos demais animais inventando formas radicalmente novas de buscar comida, cobrir o corpo, fabricar utensílios e parcelar o pagamento?

Ouço analistas econômicos discorrendo sobre a necessidade de se “aquecer as vendas”; observo o governo empurrando taxas de juros para aumentar ou conter o consumo; não agüento mais ler sobre o consumo na China e na Rússia. De tudo, fica a impressão de que o mundo só está de pé, se é que está, porque as pessoas vão às compras. Será que essa é mesmo a nossa maior finalidade existencial, aquela que garante a sobrevivência da espécie?

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Não estou descobrindo nenhuma novidade. Não falta quem estude o assunto, que já preocupava pensadores do século retrasado. Num nível mais simples, me basta uma única página do Aurélio, que traz tanto a definição de consumo, a “utilização de mercadorias e serviços para satisfação das necessidades humanas”, quanto a de consumismo, “sistema que favorece o consumo exagerado”. E o que é exagerado? Ah, aí preciso ir a outra página, onde, entre um verbete e outro, chego à conclusão de que não há definição possível para a essência da coisa, pelo simples motivo de que, embora qualquer um de nós saiba reconhecer um exagero quando o vê, o que é exagero para um pode ser necessidade básica para outro. E aí recomeçamos tudo do zero.

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Fico desconcertada, por exemplo, quando entro em lojas de quinquilharias chinesas. Não consigo deixar de imaginar o longo e intrincado caminho percorrido por cada uma daquelas pecinhas, da fabricação num canto remoto da Ásia à venda por uns poucos reais no Brasil, passando por embalagem, negociação, transporte, distribuição... Para quê?! Bichinhos variados, flores artificiais, miniaturas, vasos, porta-lápis, relógios, molduras de retrato, cinzeiros, potes e enfeites dourados, todos fazem apenas um breve estágio nas prateleiras antes de, mais cedo ou mais tarde, ir para o lixo. Quer dizer: a humanidade fica produzindo e transportando lixo de um lado para outro na superfície da terra, e disso depende a sua prosperidade e o seu bem-estar. Faz sentido?

Ainda não encontrei cidade em que não haja uma dessas lojinhas de inutilidades, e o meu espanto é sempre o mesmo. Olho um abajur ou um cavalinho de porcelana e imagino quantos milhões de outros exatamente iguais não estarão espalhados pelo planeta; penso em milhões de chineses que passam o dia inteiro fabricando abajur e cavalinho de porcelana, em milhões de caixotes cruzando os mares, em milhões de vendedores empenhados em vendê-los e em milhões de consumidores levando-os para casa, e chego à conclusão de que a vida não tem mesmo nenhuma explicação lógica.

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Como escrevi antes, observo tudo isso com mais perplexidade do que crítica. Não sou exceção à regra; dou minha contribuição rotineira ao aquecimento das vendas e ao bom andamento da economia. Trago besteiras das viagens, não resisto a papelarias embora nunca saia do computador e, se tivesse tantos ouvidos quanto tenho celulares, já teria chamado a nave-mãe para voltar para casa.

No fundo, no fundo, eu só queria entender.


(O Globo, Segundo Caderno, 15.5.2008)

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