25.5.08

O protetor dos quero-queros


Jardineiro do Maracanã recolhe ovos dos ninhos e salva pássaros de massacre


Ponha-se no lugar de um quero-quero na cidade do Rio de Janeiro. Você precisa de uma campina verdejante para morar e constituir família, dado que constrói seu ninho no chão e alimenta-se basicamente de insetos e caramujos.

Visto de cima, o Maracanã, única mancha verde e ampla numa área predominantemente cinza e atulhada de construções, é um lugar aparentemente perfeito, um autêntico e inesperado filé-mignon imobiliário.

Vista de perto, a grama não chega a ser ideal. É muito baixa, mais dura e mais seca do que os capinzais alagados dos seus sonhos, mas um pássaro que sabe procurar direito não passa dificuldade e sempre acha um cantinho. Logo ali, embaixo daquelas traves brancas, há sempre uma grama fofa, recém-plantada, que dá um ótimo ninho.

Quando você descobre que o seu condomínio de luxo transforma-se, volta e meia, numa praça de guerra, já é tarde: você já se instalou, já fez ninho e, como tantos humanos que teimam em viver em zonas de terremoto ou áreas conflagradas, resiste a se mudar e recomeçar do zero. Afinal, sempre pode acontecer um milagre... E, para os quero-queros do Maracanã, o milagre não só existe como tem nome: ele atende por Cesar Osmar Santos da Silva.

Esporas, gritos e muita valentia
na defesa do lar

Carioca de Rocha Miranda, 33 anos, seis deles como jardineiro do estádio, Cesar acabou amigo dos pássaros, que aceitam a sua presença e nem estranham mais a máquina de cortar grama. Depois de ver vários de seus ninhos atropelados em dia de jogo, decidiu tomar providências, e remover os ovos para local seguro antes das partidas.

As primeiras tentativas não deram certo. Quando alguém pega um ovo na mão, os pássaros — todos os pássaros, e não apenas os quero-queros — tendem a rejeitá-lo. Resultado: os ovinhos eram salvos das bolas, mas secavam ao sol, abandonados.

Com o tempo, Cesar desenvolveu uma técnica infalível. Enche as mãos de grama recém-cortada, e pega os ovinhos com ninho e tudo. Carrega o conjunto embora antes dos jogos, e só o traz de volta quando o estádio está novamente em paz:

— Os quero-queros não percebem logo que os ovos estão de volta, — diz. — Aí a gente vai enxotando eles na direção certa até acharem o ninho.

O fato de conviverem com Cesar no dia-a-dia não significa que as valentes avezinhas o deixem chegar perto dos ninhos sem briga. De cada vez, ele é obrigado a driblar as rasantes com que os pais enfurecidos tentam afugentá-lo:

— Eles vêm com tudo. Gritam muito e voam para cima da gente. São perigosos: eles têm umas esporas parecidas com as dos galos, só que na dobra da asa.

Os esporões, que os quero-queros exibem quando ficam contrariados, são uma das armas que usam contra quem consideram inimigo — ou seja, praticamente qualquer coisa, bicho ou pessoa que tenha a audácia de entrar em seu território quando estão chocando ou têm filhotes.

Outra é o grito agudo do qual deriva seu nome, e que os torna excelentes animais de guarda. No Rio Grande do Sul, por exemplo, os quero-queros são conhecidos como "as sentinelas dos pampas", sempre alertas ao menor movimento.

— Quando eles têm filhotes, ficam ainda mais bravos, — diz Cesar, que apesar de salvar ninhos do perigo, não se atreve a chegar perto de filhotes. — Eles só abrem exceção quando algum cai da beira do gramado lá embaixo. Aí os pais ficam sobrevoando aos gritos, muito agitados, até que a gente vá salvar os bichinhos. Nessas horas, parece que eles entendem que nós estamos ajudando.

Atualmente, vivem no gramado do Maracanã cinco quero-queros. Três deles nasceram e cresceram lá, sob as asas protetoras de Cesar Osmar, anjo-da-guarda disfarçado de jardineiro.


(O Globo, Rio, 25.5.2008)

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