O protetor dos quero-queros
Jardineiro do Maracanã recolhe ovos dos ninhos e salva pássaros de massacre
Ponha-se no lugar de um quero-quero na cidade do Rio de Janeiro. Você precisa de uma campina verdejante para morar e constituir família, dado que constrói seu ninho no chão e alimenta-se basicamente de insetos e caramujos.
Visto de cima, o Maracanã, única mancha verde e ampla numa área predominantemente cinza e atulhada de construções, é um lugar aparentemente perfeito, um autêntico e inesperado filé-mignon imobiliário.
Vista de perto, a grama não chega a ser ideal. É muito baixa, mais dura e mais seca do que os capinzais alagados dos seus sonhos, mas um pássaro que sabe procurar direito não passa dificuldade e sempre acha um cantinho. Logo ali, embaixo daquelas traves brancas, há sempre uma grama fofa, recém-plantada, que dá um ótimo ninho.
Quando você descobre que o seu condomínio de luxo transforma-se, volta e meia, numa praça de guerra, já é tarde: você já se instalou, já fez ninho e, como tantos humanos que teimam em viver em zonas de terremoto ou áreas conflagradas, resiste a se mudar e recomeçar do zero. Afinal, sempre pode acontecer um milagre... E, para os quero-queros do Maracanã, o milagre não só existe como tem nome: ele atende por Cesar Osmar Santos da Silva.
na defesa do lar
Carioca de Rocha Miranda, 33 anos, seis deles como jardineiro do estádio, Cesar acabou amigo dos pássaros, que aceitam a sua presença e nem estranham mais a máquina de cortar grama. Depois de ver vários de seus ninhos atropelados em dia de jogo, decidiu tomar providências, e remover os ovos para local seguro antes das partidas.
As primeiras tentativas não deram certo. Quando alguém pega um ovo na mão, os pássaros — todos os pássaros, e não apenas os quero-queros — tendem a rejeitá-lo. Resultado: os ovinhos eram salvos das bolas, mas secavam ao sol, abandonados.
Com o tempo, Cesar desenvolveu uma técnica infalível. Enche as mãos de grama recém-cortada, e pega os ovinhos com ninho e tudo. Carrega o conjunto embora antes dos jogos, e só o traz de volta quando o estádio está novamente em paz:
— Os quero-queros não percebem logo que os ovos estão de volta, — diz. — Aí a gente vai enxotando eles na direção certa até acharem o ninho.
O fato de conviverem com Cesar no dia-a-dia não significa que as valentes avezinhas o deixem chegar perto dos ninhos sem briga. De cada vez, ele é obrigado a driblar as rasantes com que os pais enfurecidos tentam afugentá-lo:
— Eles vêm com tudo. Gritam muito e voam para cima da gente. São perigosos: eles têm umas esporas parecidas com as dos galos, só que na dobra da asa.
Os esporões, que os quero-queros exibem quando ficam contrariados, são uma das armas que usam contra quem consideram inimigo — ou seja, praticamente qualquer coisa, bicho ou pessoa que tenha a audácia de entrar em seu território quando estão chocando ou têm filhotes.
Outra é o grito agudo do qual deriva seu nome, e que os torna excelentes animais de guarda. No Rio Grande do Sul, por exemplo, os quero-queros são conhecidos como "as sentinelas dos pampas", sempre alertas ao menor movimento.
— Quando eles têm filhotes, ficam ainda mais bravos, — diz Cesar, que apesar de salvar ninhos do perigo, não se atreve a chegar perto de filhotes. — Eles só abrem exceção quando algum cai da beira do gramado lá embaixo. Aí os pais ficam sobrevoando aos gritos, muito agitados, até que a gente vá salvar os bichinhos. Nessas horas, parece que eles entendem que nós estamos ajudando.
Atualmente, vivem no gramado do Maracanã cinco quero-queros. Três deles nasceram e cresceram lá, sob as asas protetoras de Cesar Osmar, anjo-da-guarda disfarçado de jardineiro.
(O Globo, Rio, 25.5.2008)
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