8.5.08


É ruim, mas é bom

Dependendo do gosto de cada um, várias perguntas se impõem ao se sair do cinema, depois de assistir a “O sonho de Cassandra” -- a começar por “Não teria sido melhor ficar em casa?”, em última análise, A Grande Questão do espectador, seja ele do que for, esteja o que estiver em cartaz e supondo, é lógico, que reine a paz no recesso do lar. No meu caso, uma simples questão: “O que eu teria achado deste filme se não fosse um Woody Allen?”

Difícil responder. Talvez achasse fraco ou, no mínimo, muito lento; e, com certeza, me irritaria com o título. O problema é que, quando se assiste a um filme de Woody Allen tendo intimidade com seu trabalho, a personalidade do diretor se sobrepõe ao conjunto da obra. Não há como separar uma coisa da outra. Disso resulta que o pior Woody Allen ainda é melhor e mais “gratificante” (perdão) do que 90% do que se vê por aí.

Não que “O sonho de Cassandra” seja o pior Woody Allen. Para mim, essa distinção fica com “Celebridades”, de 1998, vítima de uma escalação de elenco das mais infelizes. O novo filme da "fase inglesa", no entanto, está longe do extraordinário “Match Point” que, com matéria prima bem parecida, é, sem dúvida, um dos melhores.

Se você é do tipo que detesta saber qualquer coisa a respeito de um filme antes de comprar a entrada, fecha os olhos durante os trailers para ser surpreendido pela história do começo ao fim e só conversa sobre cinema depois de ter visto tudo o que está em cartaz, pare aqui e pule direto para o parágrafo que começa depois daqueles quadradinhos de separação lá adiante. Não vou contar nada que não esteja em qualquer resumo do filme, mas resumos de filme são, notoriamente, sinônimos de inocência perdida: quem avisa amigo é.

Dois irmãos de pequena classe média, bons filhos e gente boa, metem-se, cada qual a seu modo, numa senhora enrascada. Um contrai dívidas de jogo que jamais poderá pagar. O outro se apaixona por uma linda atriz com quem não teria qualquer chance se, por um engano, ela não o tomasse por homem de posses. Eis que um personagem aparece do nada e, conveniente deus ex-machina, oferece aos dois a solução para seus problemas... desde que cometam um crime. A proposta vem em momento tão decisivo que eles quase não têm escolha. É em cima desse quase que giram o filme, suas questões filosóficas e, last but not least, o papo da mesa de botequim: “O sonho de Cassandra” é um clássico Paissandu, que cresce quando as luzes se acendem, e quando se pode, enfim, começar a discuti-lo, sem incomodar os espectadores ao lado.

Ao contrário de “todo mundo” (et son père, naturalmente), não gostei dos atores. Colin Farrell, o irmão endividado, ainda se salva. O resto do elenco me pareceu claudicante e, coitado, entregue à própria sorte. Não há nada de cômico no filme, antes pelo contrário, mas certas situações poderiam ser menos constrangedoras se os atores soubessem o que fazer. Também não gostei da trilha de Philip Glass, tão óbvia quanto a fotografia de Vilmos Zsigmond, se é que podemos comparar alhos com bugalhos. Até mesmo os diálogos afiados, marca registrada de Woody Allen, estão estranha e frustrantemente ausentes de “O sonho de Cassandra”. O que sobra, então?

Sobra a sensação de que estamos conversando com um conhecido particularmente brilhante que, apenas, não está num dos seus melhores dias. E sobram os temas da conversa, eternos ainda que já fossem antigos na antiga Grécia. Até que ponto o ser humano pode fugir ao destino? O que vale mais, pragmatismo ou coração mole? É melhor ser bom ou ter sorte? É possível viver com a culpa de um crime? A vida tem jeito? E a entrada, não está muito cara? Amenidades, conforme se vê.

Ah, sim: Woody Allen ou não Woody Allen, o título é irritante mesmo. Cassandra, vocês sabem, é aquela personagem da mitologia que tinha o dom de prever o futuro, e a maldição de não ser levada a sério. No filme, porém, “O sonho de Cassandra” é apenas o nome de um barco. Ora, podiam tê-lo batizado logo de “Isso não vai dar certo”.

* * *

Pronto, vocês que fecharam os olhos: podem ler em segurança a partir daqui. Cumprindo a promessa que fiz aos defensores de “Os guarda-chuvas do amor”, assisti ao filme novamente. Reconheço que, com o tempo, ele ganhou certo charme de época: cenários, figurinos, cabelos, até o postinho de gasolina de brinquedo, tudo é irresistivelmente anos 60. Mas, sinto dizer, continuo achando a música insuportável. Quem sabe, numa próxima encarnação eu venha à altura do filme de Jacques Demy. Nessa, tudo indica que permaneceremos incompatíveis.

Por outro lado, recomendo calorosamente aos que gostam de ópera que aproveitem o dólar barato e mandem vir da Amazon.com o DVD da “Traviata” apresentada no Festival de Salzburgo de 2005, com Anna Netrebko, Rolando Villazón e Thomas Hampson nos papéis principais. A montagem, minimalista ao extremo, é surpreendentemente eficiente. Villazón é a cara do Mr. Bean e Hampson, tão charmoso nas capas dos CDs, poderia fazer Frankenstein com poucos ajustes – mas, quando eles começam a cantar, quem repara nesses detalhes?! Os dois passam com louvor pelo duro teste de dividir o palco com a Netrebko, que ninguém descobriu ainda se, com aquela voz, precisava mesmo ser tão bonita, ou se, com todos aqueles atributos, ainda precisava cantar tão bem.


(O Globo, Segundo Caderno, 8.5.2008)

Desculpem o atraso na postagem, mas a gripe me pegou de jeito... :-(

Nenhum comentário: