Três dias de luto são pouco para tanto descaso
Alguém (tirando o governo) tinha dúvida de que um desastre estava por acontecer?!Sete e meia de terça-feira. Voltando para a mesa, depois de um café no outro extremo da redação, passei por uma televisão que mostrava um canal diferente das outras, sintonizadas, todas, na apresentação da ginástica masculina no Pan. Nessa tevê solitária, havia uma imagem de chamas no aeroporto de Congonhas. Ninguém sabia ao certo o que acontecera; diziam que um avião de carga derrapara na pista e se chocara contra um depósito de combustível. Horrível, claro — mas, estranhamente, dentro da escala do horror aceitável, proporcionada pela falta de informações concretas. Passei pelo Xexéo ali adiante, num grupinho que assistia o Pan, e perguntei se ele sabia de um incêndio em Congonhas.
— Não é em Congonhas. É no Santos Dumont. Uma loja pegou fogo hoje à tarde.
— Uai, é? Tenho quase certeza de que o que eu vi era ao vivo, e que dizia Congonhas...
Fomos os dois, intrigados, para a televisão sintonizada no acidente. Era Congonhas. A essa altura, algumas das outras televisões da redação começavam a sair do esporte. A editoria nacional, que daria a notícia do que quer que houvesse acontecido, entrou em alerta máximo: esse é o horário em que o fechamento do jornal está no auge, e em que qualquer fato novo pode significar mudanças drásticas na edição.
A ficha coletiva, porém, ainda não havia caído; ainda podíamos perguntar aos bolinhos de gente formados em frente às televisões se aquele era um grupo do Pan ou um grupo do acidente, e rir com isso. À medida em que nos dávamos conta das dimensões da tragédia, porém, a consternação tomava conta de todos, e as televisões iam, uma a uma, sendo mudadas para as transmissões de São Paulo. As brincadeiras que fizéramos minutos antes e as comemorações ruidosas pelas medalhas conquistadas no Pan pareciam parte de um passado muito remoto. Num daqueles filmes antigos de Hollywood, alguém teria gritado: “Parem as máquinas!”.
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Passa, agora, da meia-noite. Ainda há muitas televisões e muitos jornalistas ligados, trabalhando como se estivéssemos no meio da tarde. Eles buscam algum fato novo para as páginas da terceira edição. Quem está diagramando essas páginas é, por coincidência, o Galante, especialista em tudo o que diz respeito a aviões e aviação. Alguns de nós nos reunimos em torno do infográfico desenhado sobre a foto aérea de Congonhas, revoltados com a paisagem familiar da pista cercada de casas e prédios por todos os lados, perfeito retrato da estúpida e gananciosa administração urbana que condena a maioria das cidades brasileiras ao fracasso.— Não tem margem nenhuma para erro, é como um porta-aviões num mar de prédios, — observa o Galante, fazendo uma analogia perfeita.
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Quase duas da manhã. A turma da faxina já trabalha entre as mesas, surpresa de ainda encontrar tanta gente. Todos já sabem que estamos diante do maior desastre aéreo do Brasil – até o próximo, em breve, num aeroporto perto de você. Ao meu lado, numa televisão que não consigo ver, um locutor lê a lista interminável de nomes. Penso nas pessoas a quem pertenciam esses nomes, penso nas centenas de famílias para quem eles tinham significados que nunca saberemos, penso no desespero dos que perceberam que iam morrer, tento me consolar imaginando que muitos sequer souberam o que lhes aconteceu.Penso na alegria perdida do Pan e nos atletas que mereceriam as manchetes seqüestradas pela tragédia. Penso também em coisas triviais, como, por exemplo, no que haveria nas cargas do depósito consumido pelas chamas. Seriam provavelmente mercadorias comuns, mas não consigo deixar de imaginar presentes de aniversário e de dia dos pais, agrados para amigos, surpresas para namorados e namoradas: carinhos perdidos.
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Maior do que a tristeza, só a raiva de saber que assistimos, impotentes, a um assassinato premeditado. As vítimas foram, por acaso, os passageiros do vôo 3054; mas desde o acidente da Gol, ficou óbvio para todo mundo -- menos, aparentemente, para as autoridades responsáveis -- que novas tragédias estavam por acontecer. Um governo que dá prioridade às lojas e aos mármores dos aeroportos em detrimento da segurança, que permite a liberação de pistas inacabadas, que não consegue disciplinar controladores de vôo, que distribui cargos técnicos especializados a correligionários despreparados, não é apenas incompetente; é criminoso, mesmo.Mas a culpa, vocês vão ver, vai ser do piloto.
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Para fugir da tragédia e encontrar um pouco de paz recomendo, muito, o show da Olívia Byington, que fica em cartaz até domingo na Laura Alvim. Última chance! O teatrinho é pequeno, o clima intimista, a música o que há de bom: um bálsamo. Olívia, sua voz cristalina, seu humor raro e seu violão estão em casa, e é como se nós estivéssemos em casa também, passando uma noite deliciosa com uma amiga linda, inteligente e talentosa.(O Globo, Segundo Caderno, 19.7.2007)
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