12.7.07


A Flip vista de fora

E, nas livrarias, dois colossos abrem uma janela aterrorizante para o Oriente Médio


Fui à Flip pela primeira vez há cinco anos, na cômoda qualidade de mulher de escritor. Não precisei fazer palestra, não precisei dar entrevista nem autógrafo e, ainda assim, fiquei por dentro de tudo: festas, jantares, the works.

Naquela Flip de estréia, porém, ninguém precisava de status tão especial para curtir a festa. Na cidade havia provavelmente mais escritores, editores e jornalistas do que leitores, e não se podia dar dois passos sem se esbarrar num dos ilustres convidados. Esbarrar, aliás, nem é a palavra certa; não havia gente suficiente nas ruas para isso, de modo que todos se encontravam civilizadamente.

Era muito divertido sentar no barzinho da praça e ver os amigos enfrentando as pedras birutas do chão; era emocionante passar pelas casas de portas e janelas abertas e receber convites para entrar para um cafezinho. Meu barato particular era tomar café da manhã com vista para o Hobsbawn: eu fazia questão de escolher uma mesa em frente à dele, e lá ficava, observando o velho historiador lendo e tomando chá.

Havia um jeito quase doméstico naquela Flip que dava os primeiros passos, buscando rumo. Havia muita improvisação, mas havia também muita boa vontade. Aqueles foram dias encantadores, que estão entre as grandes lembranças da minha vida.

* * *

Este ano, depois de uma longa ausência, voltei à Flip, mas num esquema completamente diferente; nem me dei ao trabalho de conseguir credencial de imprensa. Fiquei no pequeno paraíso que é a casa da minha amiga Luciana Pordeus, em Angra, de onde saía para eventuais incursões a Paraty. Fui, em suma, de turista, e não de participante — e isso fez uma diferença enorme.

Para início de conversa, encontrei apenas meia dúzia de conhecidos na cidadezinha onde, de acordo com a programação, estava boa parte do meu círculo social. É que havia tanta gente por lá que avistar alguém, do alto do meu metro e meio, era quase impossível. Afastada das badalações oficiais, fiquei, também, afastada das estrelas da Flip.

Assisti ao começo da mesa de Lawrence Wright e Robert Fisk na tenda da praça, mas logo me cansei da experiência virtual: qual é a graça de assistir a um debate que está acontecendo lá do outro lado da ponte, sem ver os participantes ao vivo e sem poder fazer perguntas?! A deslumbrante luz do cair da tarde era mais atraente, e fui ao seu encontro.

* * *

Paraty mudou muito da primeira Flip para cá, a começar pelo chão. Não sei se andaram ajeitando as pedras ou se preencheram os espaços com terra, mas agora é possível caminhar e olhar para a frente ao mesmo tempo. Há uma quantidade de novos hotéis e pensõezinhas simpáticas, restaurantes, bares e lojas. Em compensação, vi poucas casas tão cordialmente abertas, o que é mais do que compreensível, dada a quantidade de pessoas nas ruas.

Acho formidável que uma festa de livros e autores mobilize tanta gente, mas não consigo evitar um sentimento ambíguo em relação à Flip, super-dimensionada para a cidade que a abriga. Faltou luz, faltou água e, na sorveteria que eu adoro, faltaram, no sábado, praticamente todos os sabores de sorvete, menos morango, banana e iogurte.

Faltou também a descontração antiga, em que éramos todos, escritores e leitores, farinha do mesmo saco. Maior, mais profissional e mais organizada, cheia de regulamentos e restrições, a Flip passou a ser, pelo menos para quem a vê de fora, uma Bienal em cenário colonial.

* * *

Não foi por nada que tentei ver a mesa de Lawrence Wright e Robert Fisk; juntos, os dois cavalheiros produziram 1.468 páginas eletrizantes. Seus livros, respectivamente “O vulto das torres” (Companhia das Letras, 506 páginas) e “Pobre nação” (Record, 962 páginas), são quase complementares, ainda que muito diferentes entre si.

“O vulto das torres” é, em última análise, uma reportagem monumental, que acompanha a escalada do extremismo islâmico até o fatídico 11 de setembro. Wright, da equipe do New Yorker, é um pesquisador incansável e – felizmente – um escritor da melhor qualidade. Seu livro, que se lê como um John Le Carré, tem, a seu favor e nosso azar, uma peculiaridade sinistra: é tudo verdade.

Já “Pobre nação”, de Robert Fisk, é um relato em primeira pessoa, cheio de som, fúria e significado. Correspondente do Independent em Beirute, fluente em árabe e único jornalista ocidental a entrevistar Osama Bin Laden três vezes, Fisk resume os 25 anos de guerras que acompanhou no Líbano. Claro que, sendo o Oriente Médio o que é, e as guerras o que são, mesmo esse resumo ocupa quase mil páginas.

Não se assustem, porém, com o tamanho desses colossos. Ambos são livros fundamentais para entendermos os nossos tempos – ou, pelo menos, para termos uma idéia do festival de insensatez que rege o mundo.

Para quem acha que tudo isso acontece lá longe, e que nunca vai nos atingir, lembro apenas que já atingiu. Cada vez que passamos por um check-in de aeroporto tirando os sapatos e o notebook da mala de mão, cada vez que nos confiscam a tesourinha de unha, cada vez que comemos uma refeição de bordo com talheres de plástico, estamos, sem perceber, endossando o triunfo de Bin Laden.

(O Globo, Segundo Caderno, 12.7.2007)

Nenhum comentário: