9.6.07

Paulo Rónai: pois é

Felipe Fortuna
Jornal do Brasil, Idéias, 9.6.2007)
Aprendo muito com Paulo Rónai (1907-1992), exemplo de humanista e de trabalhador intelectual cuja biografia revela várias vidas: a primeira, na Hungria, até 1939, quando a fúria nazista o forçou a deixar seu país; a segunda, no Brasil, país que elegeu a partir do amor pelo idioma e onde consolidou sua obra de tradutor, ensaísta, professor, gramático, lingüista e, à falta de melhor termo, divulgador literário. Essas vidas numerosas ainda se multiplicaram nas línguas que Paulo Rónai dominou com alto sentido cultural – não apenas o húngaro e o português, mas o francês, o italiano, o espanhol, o inglês, o alemão e o latim. Para cada uma dessas línguas misturadas às vidas, o mestre deixou não menos do que um ensaio ou um livro importante, e por vezes – como na coordenação da tradução integral para o português d’A Comédia Humana, de Honoré de Balzac – muitos volumes que se transformaram em paradigma para a edição de literatura estrangeira no Brasil.

Quando comecei a ler Paulo Rónai, ainda na adolescência, logo percebi que o seu trabalho também trazia valores éticos e lições profissionais que o escritor comunicava com humor e até mesmo inesperada alegria. Num texto intitulado “De Quantas Línguas Precisa o Homem?”, ele escreve sobre as “maiores satisfações” experimentadas quando leu o primeiro livro em alemão, quando deu o primeiro telefonema em francês, quando ganhou o primeiro dinheiro em italiano. O prazer é referência constante na descrição do conhecimento profundo que tem das línguas. Em muitas análises literárias, como as de Encontros com o Brasil (1958), usa palavras como “emoção” e “frêmito” para comunicar seu deleite com a poesia e a prosa que lhe transmitem a dimensão da vida. Desde então, passei a imaginar Paulo Rónai como um poliglota cuja missão pareceu estar perigosamente esticada entre duas posições: uma, a do alemão Gottfried Herder, de que “ninguém pensa além do idioma”; outra, a de Guimarães Rosa: “traduzir é conviver”. Como esta frase é a que abre o livro Escola de Tradutores (1952), concluo que Paulo Rónai enfrentou o intraduzível – e conseguiu transmitir palavras, livros e idéias.

Hid-ember (homem-ponte, na sua língua nativa), o tradutor fez façanhas. Foi dele o primeiro livro brasileiro traduzido para o húngaro, Brazilia Üzen (Mensagem do Brasil), uma antologia da poesia moderna brasileira, publicado no fatídico 1939. Para o húngaro também traduziu uma antologia de dois mil anos de poesia latina. Traduziu para o francês as carioquíssimas Memórias de um Sargento de Milícia (1854), de Manuel Antônio de Almeida, havendo tido o cuidado de percorrer “os velhos bairros e morros do Rio, hoje ocupados por favelas, onde o afilhado do barbeiro fizera das suas até virar sargento”, como conta em A Tradução Vivida (1975). Do húngaro trouxe para nós, entre outros títulos, Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár, originalmente publicado no ano de nascimento do seu tradutor. A longa bibliografia ainda inclui obras do alemão, do latim e do francês para o português do Brasil, todas realizadas segundo o mesmo princípio: “a tradução, que força uma língua a dobrar-se, acompanhando as curvas de um pensamento estrangeiro, é, mais ou menos, o único meio de comunhão espiritual requintada entre as nações.”

Foi também graças à sintonia de sentimentos de pessoas estrangeiras que Paulo Rónai conseguiu enraizar-se no Brasil. Uma dessas pessoas foi o poeta e diplomata Ribeiro Couto, que trabalhava na Holanda à época em que o tradutor precisava deixar a Europa em guerra. “Primeiro amigo brasileiro que tive” e “principal responsável pela minha vida para o Brasil”, Ribeiro Couto foi o informante pioneiro da literatura e da vida literária daquele país distante. A outra pessoa em quem Paulo Rónai encontrou afinidades foi Aurélio Buarque de Holanda, também tradutor. Juntos, e ao longo de mais de trinta anos, produziram uma fascinante antologia do conto mundial, Mar de Histórias, a partir de 1945, atualmente editada em dez volumes.

Gosto muito do tom anedótico que encontro nos relatos de Paulo Rónai, especialmente em Como Aprendi Português, e Outras Aventuras (1956). Esse livro é um modelo de memorialismo cultural, o testemunho de um intelectual que, pela via do estudo e da perseverança, encontrou no domínio das línguas uma experiência dos sentidos semelhante ao êxtase. Essas aventuras intelectuais de Paulo Rónai estão repletas, como notei, de uma alegria vital, mas também de um bem-sucedido quixotismo que levou o tradutor a atacar de frente as ciladas, as ambigüidades, os provérbios e, por fim, as ilusões de um texto estrangeiro. Talvez por admirar as conquistas abstratas do tradutor, tenha predileção por Babel & Antibabel (1970), a série de estudos que ele dedicou ao problema da língua universal.

Pois uma das utopias humanas, conforme se lê na Bíblia, é a busca de uma língua a ser escrita, falada e entendida por todos. Paulo Rónai analisa os esforços realizados para o estabelecimento de uma língua artificial – entre as quais o esperanto, o panamane, o volapuque, o romanid – que resolveria quaisquer dificuldades no contato com pessoas e culturas estrangeiras.

Assim como a famosa torre, as tentativas desmoronam e jamais alcançam seus objetivos. A marcha insensata de muitos sábios permite que o tradutor classifique de “uma tragicomédia lingüística” qualquer plano milagroso da língua universal. E ele conclui que “a multiplicidade das línguas é ainda um dos baluartes da liberdade” que nos permite gozar “os efeitos abençoados da confusão de Babel”.

Como a idéia de celebridade está restrita à televisão e aos imbecis que se tornam conhecidos nos reality shows, celebro sozinho as várias vidas do grande e centenário Paulo Rónai, e levanto uma taça do amargo aperitivo húngaro Unicum ao magíster e mago magiar da tradução.

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