21.6.07


Assassinato na São Clemente

Na sexta passada, na hora do almoço, eu estava chegando à casa do nosso amigo Bianco, em São Conrado, quando minha sobrinha ligou, para avisar que tudo estava bem com ela e com a Laura. Fiquei espantada:

-- Ué, há algum motivo para que não esteja tudo OK?

Havia sim. Um ônibus desgovernado subira a calçada do prédio onde moram e atropelara várias pessoas. Ju, que chegou poucos minutos depois do acidente, quase desmaiou quando ouviu de populares que havia uma senhora muito ferida: aquela era a hora em que a Laura sairia de casa. Passado o susto, as duas, com medo de que eu estivesse assistindo ao noticiário e entrasse em pânico ao ver o local do acidente, preferiram me tranqüilizar.

Infelizmente minha amiga Suely Coelho, que conquistou uma legião de fãs e amigos dedicados com o simpático blog "A blogueira dos enta", não teve a sorte de contar com o mesmo alívio. A senhora ferida era sua mãe Elizabeth, de 65 anos, que veio a falecer no início da madrugada de sábado.

Suely e a família passaram pela via crucis de todo carioca desesperado. Não havia vaga na UTI de nenhum hospital, público ou particular, nenhuma autoridade se manifestou, a empresa de ônibus saiu fora. Em suma: como sempre, os cidadãos que se lixem.

* * *

"Fui impedida de entrar no hospital antes das 18h30, -- escreveu. -- Não queria aceitar a gravidade do caso, mas ao mesmo tempo a intuição dizia que algo não estava bem. Quando cheguei à sala de ressuscitação anexa à enfermaria, lá estava ela, numa maca de metal, respiração ofegante, toda agitada, mas já em coma. Desesperei. Queria que os médicos me dessem a resposta que queria ouvir, que ela sairia dessa. Fiquei numa busca frenética por opiniões e por médicos.

Liguei para a companhia de transportes, falei duas vezes com um inspetor que informou que a empresa tomaria providências, que os diretores seriam avisados e que eu aguardasse. Nunca mais consegui falar com ele. Procurei por hospitais que pudessem receber minha mãe, mas nenhum tinha vagas na UTI.

Meu irmão, também colhido pelo ônibus, elogiou muito o Corpo de Bombeiros. Um dos bombeiros que foi até a sala quando eu estava lá disse que minha mãe o abraçou, e que estava muito assustada.

Todos os profissionais foram competentes, mas como é que um só neurologista pode atender a todo o hospital?! Chegava gente baleada, eles tinham que dar atenção imediata... Até me disseram que ela não podia ter sido melhor assistida, o que talvez seja verdade do ponto de vista humano, mas como se conformar com essa falta de estrutura?"

Na internet, d. Elizabeth deixou de ser apenas mais uma estatística, mais uma vítima da violência que nos cerca de todos os lados, de todas as formas. Entre as fotos de família, os depoimentos da Suely e seu diálogo com os amigos que vieram dar abraços, confortar e manifestar tristeza e solidariedade, acabamos todos meio órfãos da senhora alegre, cheia de vida, saúde e disposição.

* * *

"A gente levava nossa vidinha, -- continua Sue. -- Ela ativa e disposta. Sempre com aquele tom de mãe que quer ensinar. Não foi de super proteger, queria que os filhos fossem independentes e fortes como ela. Não sei se sou assim, como ela desejava. Fui a filha que eu sabia ser. Sei que posso tê-la desapontado algumas vezes, como ela também, mas nos amávamos do nosso jeito. Mãe que adorava uma margarida, mãe que adorava opinar, mãe companheira, mãe que reclamava do peso extra, mãe que se preocupava com os nossos problemas e saúde. Ser mãe é assim, ser do jeito dela, aquele jeito brejeiro de mãe sapeca, mãe atleta, mãe espevitada. Queria tantas vezes ler seus pensamentos, ela não exprimia tudo, era assim contida, como eu. Ela era tudo, era a minha mãe."

* * *

Esta foi a segunda vez, na mesma semana, que um ônibus da Vila Isabel sofreu falha mecânica grave. Neste, a barra de direção quebrou; o outro perdeu o eixo e as rodas na Praia do Flamengo. Mas o pior é que, enquanto as empresas de ônibus forem a máfia que são, e as autoridades continuarem compradas como estão, nada vai mudar.

Para mim, d. Elizabeth (de capacete rosa na foto) foi assassinada, e os culpados são, em igual medida, a empresa de ônibus e as autoridades podres da nossa cidade, que nem inspecionam os ônibus, nem cuidam da manutenção das pistas. A São Clemente, onde aconteceu o acidente, vive de meias-solas e está cheia de desníveis. Não é uma rua, é um deboche.

O motorista, dessa vez, foi mais uma vítima: obrigado a dirigir um veículo sem condições de ir para as ruas, está sendo processado e vai carregar, para o resto da vida, a culpa pelo acidente que não pode evitar.

(O Globo, Segundo Caderno, 21.6.2007)

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