30.11.06


Um país fora dos trilhos

Herança maldita, de verdade, foi a de JK,
que condenou o Brasil ao atraso perpétuo



Quando acordei na segunda-feira, havia uma árvore no meio da sala. Era a árvore de Natal da Lagoa, que sempre é inaugurada em frente à minha casa. Ao contrário de tantos vizinhos, que detestam os nós que ela dá no trânsito, sou fã da árvore, e sua observadora atenta. Acompanho a montagem, fico de tocaia para ver os primeiros testes de luz e até já a visitei por dentro. Mas esse ano passou tão rápido que, quando me dei conta, ela já ia pelo meio; logo em seguida me caiu sobre a cabeça a miséria de um cartão de crédito desencaminhado, e me esqueci completamente dela, que crescia, imagino, a olhos vistos -- desde que, é claro, os olhos tivessem paz para ver. De modo que levei um susto; ou, para ser mais precisa, dois sustos. O primeiro, com o tempo:

-- Mas já?!

O segundo, com a árvore, mesmo:

-- Nossa, coitada, está horrível!

E assim, com a triste sensação de ver minha árvore querida tão mal-ajambrada com aquelas bolas enormes, fui embora para São Paulo.

* * *

Aqui começa o segundo capítulo da crônica de hoje. Adoro a Ponte Aérea, adoro aeroporto e tudo o que diga respeito a viagens; mas, pela primeira vez na vida, fui para o Santos Dumont não só contrariada, como ligeiramente apreensiva. Não tenho medo algum de avião, mas não posso dizer a mesma coisa de controladores de vôo estafados, mal pagos e sobrecarregados de trabalho. Mais medo ainda me dão as "autoridades" deste país que, a exemplo do Guia Genial dos Povos, nunca sabem de nada e são perpetuamente apanhadas de surpresa nas suas supostas "áreas de competência".

Sim, é fato, o problema do tráfego aéreo não começou ontem. Nem ante-ontem. Mas para que é que se tem governo, digam-me, se não para sanar essas coisas?! Será que quatro anos não são suficientes para se descobrir que há algo no ar além dos aviões de carreira -- correndo perigo?! É muito simples atribuir tudo o que vai mal neste país ao governo Fernando Henrique, ao imperialismo, à Coroa Portuguesa. Onde estava El Rei D. João VI que não cuidou da formação de controladores de vôo?!

* * *

No Santos Dumont há uma réplica do 14bis enfeitando o saguão. Olhei para ela longa e demoradamente: meu vôo atrasou uma hora, coisinha à toa para o ministro Waldir Pires, que certamente há de ter muitas horas livres para tratar o tempo com tal displicência. Folheei revistas na livraria, resisti a jóias, gadgets e chocolates, dei telefonemas.

Do momento em que saí de casa ao momento em que cheguei ao hotel passaram-se quase cinco horas, período mais do que suficiente para deplorar a falta de visão do visionário Juscelino Kubistchek, que acabou com os trens no Brasil e condenou o país ao atraso perpétuo.

Estradas esburacadas, aeroportos em colapso -- imaginem quantos aborrecimentos não poderíamos evitar se, como qualquer país civilizado, tivéssemos uma boa malha ferroviária? E quantas pessoas que hoje não têm condições de viajar não poderiam fazê-lo se tivessem a alternativa da estrada de ferro? Isso, claro, sem mencionar o encanto do ir e vir: ainda me lembro de subir a serra de trem quando criança, e essa lembrança, associada às experiências de tantas viagens nos países dos outros, me aperta o coração.

Também me parece incompreensível que, num país de águas, com uma das mais lindas costas oceânicas do mundo, as viagens de navio não encontrem um meio termo viável entre o luxo dos transatlânticos milionários e a precariedade das embarcações que, vira e mexe, repetem a eterna tragédia dos naufrágios fluviais.

Refazer o que se perdeu, no entanto, dá trabalho e não faz vista. Tapar buracos sem licitação e fazer obras faraônicas em aeroportos é sempre mais fácil e vistoso do que repensar seriamente o transporte e cuidar das pessoas -- tanto das que viajam quanto das que têm o delicado ofício de zelar pela segurança alheia. Gente, neste país, só conta na hora de votar. E de pagar impostos.

* * *

Nesse animado estado de espírito fui e voltei, com direito à dança das cadeiras no avião de volta: antes do embarque, fomos informados que a numeração dos assentos não valia mais, e que a escolha era livre. Taí um estranho conceito de liberdade...

Assim que o avião começou a descer, contudo, a visão do Rio afastou as nuvens da minha alma. Ao subir o Corte de Cantagalo eu já era uma pessoa feliz -- e fiquei radiante quando, lá do alto, vi a árvore toda iluminada.

Pois não é que ficou linda?!

Parei para admirá-la na portaria, enquanto o Zé me contava dos maravilhosos testes de luz a que assistira na noite anterior; e, mal entrei em casa, corri para pegar a câmera e fazer uma foto para vocês.

Mas... pois é. Voltei do escritório para a sala bem a tempo de ver a última luzinha se apagando, e o pequeno barco, que levava os técnicos, se afastando na direção dos pedalinhos. Fico devendo.


(O Globo, Segundo Caderno, 30.11.2006)

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