23.11.06


O massacre da auto-estima

Quando o padrão estético universal é desumano, a simples condição humana é garantia de infelicidade


A morte de duas jovens por anorexia, numa única semana, deveria ter acendido uma luz vermelha geral que, francamente, já era para estar acesa há décadas; mas salvo um artigo aqui e outro ali, mais as protocolares declarações de agências de modelos e organizadores de desfiles de modas, nada aconteceu -- nem podia acontecer, posto que a indústria da moda não é a única responsável pela monstruosa deformação estética dos nossos sentidos e da nossa sensibilidade.

Todos aqueles que, de alguma maneira, ajudam a criar os padrões de beleza -- entre eles a publicidade, a indústria do entretenimento, as revistas e os jornais -- têm sua parcela de culpa e, a menos que o mundo passe por uma verdadeira revolução cultural, o que acho altamente improvável, milhões de meninas e de mulheres continuarão a se martirizar em nome de uma "beleza" inatingível.

A morte é apenas a ponta mais visível de um iceberg de infelicidade crônica e de um massacre sem precedentes da auto-estima feminina.

Do alto desses tempos supostamente "civilizados", olhamos com desdém para as torturas a que eram, ou ainda são, submetidas as mulheres em sociedades antigas e/ou "primitivas": os espartilhos vitorianos e os pés deformados da China foram apropriadamente lembrados há dias, aqui mesmo no GLOBO, na página sete, por Leonardo Drummond -- que não se esqueceu de contrapô-los às atuais costelas cirurgicamente removidas, que tanta gente considera uma forma "normal" de afinar a silhueta.

A isso se poderia acrescentar um vasto catálogo de horrores contemporâneos, das argolas que continuam a esticar os pescoços das mulheres de Burma às pernas serradas e espichadas das chinesas que, com isso, ficam mais altas e "atraentes", tanto para os homens quanto para o mercado de trabalho.

É fácil percebermos que há algo errado em pessoas de resto normais, e eventualmente bonitas, que se submetem a cirurgias em que seus ossos são removidos ou serrados por razões puramente estéticas; chega a ser difícil acreditar que isso aconteça aqui, agora, num mundo cientificamente esclarecido. Mas a maioria das dietas a que se submetem tantas mulheres insatisfeitas com seus corpos e os remédios que tomam para se manterem magras não são menos prejudiciais do que os procedimentos cirúrgicos que nos horrorizam; nem é menos profundo o grau de infelicidade que as move a comportamentos tão destrutivos.

Muito pior do que o que se vê no corpo é o que vai pela alma, e que não se vê.

Esta trágica infelicidade não se restringe mais a umas poucas pessoas, mas se espalha, como praga, por toda a sociedade. Num mundo cada vez mais obeso, a imagem da beleza é, paradoxalmente, cada vez mais esquálida. A própria idéia do que é beleza, aliás, anda tão inequivocamente atrelada a pele e ossos que já não se concebe beleza acima do peso "ideal". Isso seria compreensível, até certo ponto, em termos de saúde -- se este magro "bonito" não estivesse muito, mas muito além do que a imensa maioria das mulheres pode alcançar naturalmente. E não fosse doentio.

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Reparem: é tão perversa a estética contemporânea que, se uma moça de traços bonitos tiver 1,80m de altura e pesar 50 quilos, pode dar sorte e acabar sendo fotografada pelo Mario Testino para a capa da "Vogue"; mas a feiosinha pobre, coitada, com a mesma altura e o mesmo peso, vira, quando muito, foto do Sebastião Salgado -- e periga ir para a capa da "Time", em ensaio sobre a fome e a miséria. Ambas serão igualmente convincentes.

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Desde que o mundo é mundo, nós, mulheres, somos vítimas da ditadura da beleza. Era de se esperar que, com os movimentos sociais e a independência que adquirimos ao longo do século passado, estivéssemos livres para, finalmente!, conviver em paz com nossos corpos; mas, ao contrário, nunca estivemos expostas a tal bombardeio de imagens artificiais e tipos físicos inexistentes.

A verdade é que nunca houve época em que o ideal de beleza estivesse tão afastado da realidade e dos padrões locais. No Brasil, por exemplo, onde as louras são minoria, gerações de menininhas moreninhas e baixinhas cresceram tendo como exemplo máximo de beleza e sucesso uma loura longilínea cercada de sublourinhas igualmente longilíneas. Se isso não é um passaporte carimbado para a frustração, não sei o que é.

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Um dia eu estava atravessando uma rua em Barcelona quando um outdoor me chamou a atenção. Era uma propaganda de roupas esportivas e, nele, uma mulher de top e shortinho fazia uma flexão para o lado. Levei um tempo até descobrir o que havia de "errado": a moça da foto, como qualquer pessoa no mundo, tinha dobrinhas na pele no lado para o qual se curvava. Aqui, as dobrinhas teriam sido imediatamente apagadas no Photoshop -- e as mulheres que vissem o cartaz, como vêem tantos outros cartazes o tempo todo, ficariam arrasadas por serem... ora, humanas.

Que fazer? Não olhem para mim, não tenho a resposta; só tenho perguntas, e a perplexidade de ter gasto tanto tempo da minha vida preocupada com a aparência. Afinal, sou uma baixinha com peso de gente que precisou viver mais de 50 anos para, enfim, (quase) se aceitar como é.


(O Globo, Segundo Caderno, 23.11.2006)

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