25.11.06

O Céu de Suely

O Bonequinho está olhando, não exatamente para a tela, mas para dentro de si mesmo. Está embatucado. A questão é que, até agora, passados dois dias desde que foi ao cinema, ainda não conseguiu decidir se gostou ou não do "Céu de Suely?". Ficou extasiado com a belíssima fotografia de Walter Carvalho, empolgadíssimo com o trabalho do elenco (sobretudo da extraordinária protagonista Hermila Guedes) e verdadeiramente comovido com a delicadeza do tratamento dado às personagens; mas olhou diversas vezes para o relógio ao longo da projeção e teve a bizarra sensação de viajar de volta aos tempos da nouvelle vague, uma onda que -- ufa! -- passou quando a maioria dos espectadores de hoje não era nem nascida.

Contada numa mesa de botequim, a trama é até interessante: perdida na sua cidade do interior, à qual volta depois de uma temporada em São Paulo, Hermila, jovem mãe abandonada pelo marido, decide rifar-se para pagar uma passagem que a leve ao ponto mais distante possível daquele nada. No filme, a proposta assume a dimensão de uma vida menor numa cidade mínima, ou seja, algo extremamente tedioso. O realismo que Karin Aïnouz consegue imprimir ao filme é, simultaneamente, a sua força e o seu fardo -- e o drama do Bonequinho embatucado.

A vida é mesmo, no mais das vezes, um lento passar de horas; o interior é mesmo uma grande espera, até quando os jegues já foram substituídos por moto-táxis; e a falta de qualquer perspectiva é mesmo uma massa de tédio sufocante. A respeito disso já se manifestou muita gente boa, de Tchekov a Alan Resnais, passando por Jane Austen e Bergman -- guardadas sempre, claro, as devidas proporções.

A questão com a qual o Bonequinho se debate é: será que precisamos, de fato, de mais uma constatação disso? Será que, depois de oito horas de expediente, o cidadão que vai ao cinema para escapar da vida ainda quer uma overdose de monotonia? Este Bonequinho, em particular, tem suas dúvidas. Apesar de detestar com fervor os chamados "filmes de ação", ultimamente anda ressabiado também com aqueles em que, no fundo, nada acontece.

Pelo sim pelo não, recomenda a cada um que, após consulta a seus próprios botões, dê uma chance ao filme, feito com apuro e ternura. O talento do diretor é inquestionável; o Brasil que retrata aperta o coração, tão pequenas são as suas necessidades (e oportunidades).

Quanto mais não seja, "O céu de Suely" tem a singular vantagem de apresentar ao público algo absolutamente inédito: a nouvelle vague sertaneja. O Bonequinho aprecia o esforço, reconhece os muitos méritos do filme, mas torce, do fundo do coração, para que essa onda não pegue. Um exemplar da espécie já está de ótimo tamanho.


(O Globo, Segundo Caderno, 25.11.2006)

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