17.11.06


O rapto do cachorro

(E duas ou três coisas que sei sobre
Francesca Romana Diana, a verdadeira)


Estavam uns meninos a grafitar no Jardim Botânico, semana passada, quando um senhor abordou-os e deu-lhes a informação de que haviam roubado o coelho. Eles acharam que o senhor não batia bem das idéias, mas agradeceram a informação e continuaram pintando. Não se passaram dez minutos, porém, e uma moça atravessou a rua para dizer que o rato havia sumido. Como são educados e gentis, agradeceram de novo, agora já desconfiados de que algo estranho estava acontecendo. Foi preciso que um rapaz viesse com a informação correta para que a ficha coletiva caísse:

-- Aí, ó: levaram o cachorro!

Cachorro sendo, naturalmente, o fradinho caído que se vê na foto acima, obra de Guga Liuzzi. Num espaço de meia hora, cinco pessoas comunicaram ao grupo o sumiço do quadrúpede monobloco. Mas eles queriam terminar a parede que tinham começado; e, assim, deixaram para conferir o mistério outra hora.

No dia seguinte, ao chegarem à esquina onde vivem os dois fradinhos, surpresa: o cachorro continuava lá, ainda que um pouco fora de esquadro. Empurra daqui, empurra dali, e eis que aparece um zelador:

-- O que é que vocês estão fazendo aí? Deixa o cachorro quieto no canto dele!

Guga se apresentou, disse que era o autor da obra e que só estava acertando a posição do fradinho. O zelador se abriu em sorrisos:

-- Puxa, foi você que fez? Que legal! A turma toda aqui da rua é fã do teu trabalho.

-- Ontem a gente estava pintando lá na frente e vieram dizer que o cachorro tinha sumido.

-- Pois foi. Passou um caminhão da Comlurb, desceram dois caras, pegaram o cachorro e foram embora. Mas nós fomos atrás. Aquilo era encomenda e o cachorro é nosso. Quando chegamos lá, pedimos de volta. Eles disseram que tinham levado porque estava caído, mas esse pitoco está caído há mais de cinco anos, desde que um carro bateu nele, e eles nunca fizeram nada. Agora, que ficou bonito, querem levar embora? É ruim!

Entre idas e vindas, o cachorro perdeu umas lasquinhas, mas nada que uma tinta básica não resolva. A esta altura, deve estar tinindo.

* * *

Comecei a reparar no trabalho do Guga quando apareceram uns fradinhos pintados em frente ao Mosca, na Vinicius. Depois notei um hidrante ao lado da banca do Fiúza, e outros fradinhos aqui e acolá. Fiquei radiante ao descobrir essa súbita tridimensionalidade do grafite, a grande arte urbana do nosso tempo.

Antes de ser apedrejada por quem morre de saudades dos muros limpinhos de antigamente, peço às almas nostálgicas que, por favor, não confundam os grafites, pinturas geralmente interessantes e cheias de atitude, com as pichações que emporcalham a paisagem. As pichações, nem preciso explicar, são aqueles rabiscos cretinos, feitos de preferência em monumentos públicos recém-pintados, com que vários bandos de imbecis fazem questão de provar ao mundo que são mais imbecis do que todos os outros bandos de imbecis juntos. O páreo é duro.

Tenho para mim que, ao contrário da pichação, o grafite é resultado dos anticorpos que as metrópoles possuem, em maior ou menor grau, contra o que as agride: depois de passar tempos entregue às baratas e aos pichadores, o muro do Jockey, por exemplo, virou ímã para grafiteiros -- e, aos poucos, começa a se tornar uma sensacional galeria de arte a céu aberto, uma espécie de diário emocional da cidade e dos tempos.

Como toda pintura mural, o grafite descende diretamente das pinturas das cavernas, as mais antigas manifestações artísticas humanas de que temos notícia. Mas pintura mural, como diz o próprio nome, é pintura numa parede, num muro. Não sei em que momento ou em que ponto do planeta ela desceu das grandes superfícies para se apoderar do chamado "equipamento urbano" -- mas não me surpreenderia se a invenção fosse carioca. O absoluto abandono do que é público na nossa cidade pode ter sido a mola propulsora para a apropriação de monstrengos como caixas comutadoras enferrujadas, hidrantes desbotados e fradinhos detonados, agora tornados personagens queridos de suas vizinhanças.

* * *

Por um desses acasos da vida, conheço Francesca Romana Diana desde que era adolescente, em Roma. Na época, ela ainda nem sonhava em vir para o Rio, embora já se notassem, nas jóias que fazia, o talento e a criatividade da extraordinária designer que é. Com o tempo, e com lojas espalhadas pelo mundo todo, Francesca transformou seu belo nome em sinônimo de peças bonitas e elegantes; mas, ao se divorciar, numa dessas reviravoltas surrealistas do mundo da moda, correu o risco de perdê-lo para o ex-marido.

Amargurada com a situação kafkiana de ver assinadas como suas peças que jamais usaria, ela esteve perto de deixar o país e a profissão. Felizmente pensou melhor, passou a assinar o nome completo, sacudiu a poeira e, agora, acaba de dar a volta por cima de maneira espetacular.

Com a autoridade que me dão quase trinta anos de amizade, posso afirmar, categoricamente, que Francesca Romana Diana é única -- e, aqui no Rio, só pode ser encontrada na Visconde Pirajá, esquina de Aníbal de Mendonça.

Recusem imitações!


(O Globo, Segundo Caderno, 16.11.2006)

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