2.11.06


"Que queda foi aquela, companheiros!"

(Shakespeare, Julio Cesar, discurso de Marco Antônio)

Na maioria das vezes, o pior do
tombo de bicicleta é o tamanho do mico



Existem dois tipos de ciclistas: os que caem e os mentirosos. Levar tombo da bicicleta faz parte da vida sobre duas rodas, mais ou menos como ser assaltado faz parte da vida brasileira: você pode ter tido sorte e estar incólume até agora, mas não se fie -- mais cedo ou mais tarde, você também será uma estatística. Não é questão de se, é apenas questão de quando.

Tudo isso me foi dito por um amigo centauro, meio homem, meio bicicleta, daqueles que compram cada parte da magrela separadamente, inventam seus próprios quadros e guidões e, claro, já se estabacaram de todas as formas possíveis e imagináveis. E, nem preciso dizer, pertencem ao primeiro grupo.

Ele estava me consolando do tombo monumental que tomei semana passada, e do qual saí com o braço e o joelho esquerdos esfolados e uma marca de oito dentes em semicírculo na batata da perna direita, resultado de uma mordida cavernosa da catraca da corrente.

Não sou boa ciclista, só sei andar sem as mãos em retas e fico roída de espanto e inveja quando vejo alguns prodígios de equilíbrio: surfistas carregando pranchas, pais com uma criança na frente e outra atrás, carregadores diversos levando as mais estranhas mercadorias.

A simples visão de alguém pedalando e usando guarda-chuva ao mesmo tempo, incomum aqui mas freqüente na Europa, já basta para me encher de admiração.

Sempre que caio, acho que não fui talhada para a coisa, que mais seguro seria mesmo comprar uma daquelas bicicletas ergométricas que não saem do lugar e todas as besteiras em que pensam os maus ciclistas quando se ferram. Ouvir daquele bamba das duas rodas que cair é a coisa mais normal do mundo foi, portanto, um bálsamo para a minha alma ainda contundida: afinal, no tombo de bicicleta, muito pior do que os arranhões é o tamanho do mico que se paga.

Sob este aspecto, meu penúltimo tombo foi uma tranqüilidade. Eu estava num parque na Alemanha, ainda durante a Copa do Mundo, e freei abruptamente para fotografar um esquilo que almoçava. O chão, de areia, era o que há de menos propício para freadas abruptas -- e de mais propício a arranhões perversos.

A bicicleta dançou, deu um pinote, e lá fomos nós: ela para um lado, eu para o outro e o esquilo árvore acima, espantado com o estrépito. Tirando ele, porém, não havia ninguém nas redondezas, de modo que pude recolher os caquinhos do meu orgulho sem testemunhas. Até voltar ao hotel, no entanto, o machucado do joelho grudara no jeans: além da dor, uma aflição só.

Mas passa.

Passou.

Semana passada não tive tanta sorte. Os pneus estavam baixos e rumei para o posto; o sinal fechou na Vinicius, resolvi aproveitá-lo, acelerei e, ainda por cima, fiz uma curvinha estratégica para pegar a rampa do meio-fio. Pronto: diante dos carros todos parados, a bicicleta ganhou vida própria e voou para a direita, enquanto eu despencava para a esquerda.

Não vou dizer que a vida passou num flash diante dos meus olhos, mas o tombo aconteceu em câmera tão lenta na minha cabeça que foi quase como se me visse de fora: os pneus ao alto, o guidão ao chão, a catraca assassina na perna. Ai!

Levantei-me o mais rápido que pude, mas não o suficiente para evitar que um cavalheiro prontamente saltasse de um dos carros para me ajudar:

-- A senhora está bem? Não se machucou?

-- Não me machuquei, não, obrigada.

-- Precisa de ajuda?

-- Não, obrigada, está tudo OK.

Morrendo de vergonha, dei duas mexidinhas na bicicleta para dar à platéia a impressão de que estava mais preocupada com os prejuízos do que com os arranhões, e sumi o mais rápido que pude da cena. No posto, enquanto um atendente enchia os pneus, conferi os estragos e liguei para um amigo médico. Perguntei o que recomendava para os machucados. Anotem aí, porque nunca se sabe:

-- Lavar bem com água e sabão, passar água oxigenada e, se for o caso, cobrir com uma gaze para não ficar roçando na roupa. Se a gaze grudar na ferida, água oxigenada.

Funcionou. Escrevo na terça-feira, uma semana depois do King-Kong, e tudo está sarando como deve. Curiosamente, os ralados bobinhos doem mais do que a dentada da catraca, mas é assim mesmo. Mais difícil foi recompor o amor-próprio ferido -- mas saber que acontece com todo mundo muito me ajudou.

Por isso, inclusive, esta crônica, dedicada a todos que já me disseram que não andam de bicicleta por medo de tombos. Fala uma sobrevivente: do chão não se passa.

* * *

Agora que as eleições acabaram e que a vida volta a entrar nos eixos, faço três pequenos registros que perderam a vez para a política. Começo com a "Agenda Carioca", da Antonia Leite Barbosa, uma publicação da editora Senac Rio que todo carioca deveria ter em casa. É uma mina de endereços úteis e dicas inesperadas, que não canso de consultar.

Outro: "O menino que amava Anne Frank", de Ellen Feldman, da Editora Record, romance criativo e bem conduzido que, apesar do tema deprimente, é excelente leitura.

Finalmente, um viva à Alfaguara, editora com E maiúsculo, que vem lançando um livro maravilhoso depois do outro.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.11.2006)

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