9.11.06


Está tudo acabado entre nós!

Cronista discute a relação
com cartões de crédito



-- Estou falando com a senhora Cora?

A voz do rapaz era bem educada, mas meu sistema imunológico entra em alerta máximo quando alguém me pergunta se está falando com a "senhora Cora". Ainda assim, sendo, efetivamente, a senhora Cora, disse que sim, que ele estava falando comigo mesma. Que ventos o traziam?

-- Bom dia, senhora Cora. Meu nome é Rafael, sou do departamento de prevenção contra fraudes e estou ligando porque notamos algumas despesas que fogem ao padrão habitual de gastos do seu cartão de crédito.

Depois da protocolar troca de identificações, o Rafael listou as despesas: mais de mil reais no Walmart (onde jamais pus os pés), pequenas fortunas em postos de gasolina (não tenho carro), gastos ridículos em lanchonetes (das quais a dieta me obriga a manter distância). Além disso, no horário em que foram realizadas, estou invariavelmente dormindo. Como pode alguém que vai para a cama às 5h, na Lagoa, detonar um cartão de crédito às 9h30, no Walmart?!

Meu cartão foi clonado, e tudo estaria resolvido se eu soubesse onde ele está. Mas não sei. Este cartão, especificamente, vive na gaveta da escrivaninha, de onde sai apenas em viagens ou emergências. Foi comigo para Helsinki, disso estou certa e dou fé; se foi perdido por lá e não reparei, estaria sendo detonado na Stockmann, e não no Walmart.

Tudo estaria resolvido, também, se o indigitado cartão tivesse seguro contra perda e roubo; mas, de todos os meus sei lá quantos cartões, este tinha que ser, naturalmente, o único sem seguro. Ora, eu nunca, jamais, em tempo algum, liguei para uma administradora para pedir pedir seguro. Para mim, o seguro vinha com o cartão, automaticamente. Pelo menos, é assim que acontece com os outros.

No auge do estresse, ainda sem solução à vista para o impasse que pode levar o meu décimo-terceiro embora, tomei uma decisão de Ano Novo adiantada: em 2007, vou dar jeito na minha financeira -- e este jeito vai começar pelos cartões de crédito. Não quero mais cartões de crédito! Chega de cartões de crédito! Já me livrei de vícios piores; agora está na hora de tomar tenência e vergonha na cara, e equilibrar o orçamento. Afinal, sou mulher ou sou perua?!

* * *

Minha relação com os cartões de crédito começou em 1983, quando vocês ainda não eram nascidos. Foi quando ganhei do falecido Banespa meu primeiro cartão, um American Express. Ter cartão no Brasil, naquela época, não era nem muito comum nem muito fácil, e fiquei encantada com as facilidades que me proporcionava aquele lindo retângulo de plástico.

Cheguei a desenvolver uma relação afetiva com o meu American Express, que informava a quem o visse que eu era "associada desde 83". Vejam vocês como é fácil iludir uma alma simples: "associada"! Eu acreditava sinceramente naquilo, e na correspondência cheia de salamaleques que a American Express enviava -- e, como o cartão não tinha limite de gasto, acreditava também que aquele dinheiro era todo meu. Fiz compras extravagantes e maravilhosas e fui muito feliz, ainda que ficasse tenebrosamente endividada.

Essa linda relação terminou de maneira brusca aí pelos idos do ano 2000, se não me engano, quando fiquei doente, tive que ser operada, entrei em depressão e me esqueci de pagar a conta, paradoxalmente baixíssima, por dois meses. Pois não é que, justo nesse momento de desamparo, o American Express que eu tanto amava cancelou meu cartão e me mandou o nome, sem qualquer cerimônia, para o serviço de proteção ao crédito?!

Fiquei tão magoada, mas tão magoada, que nem dá para descrever. Pois não éramos associados desde 1983?! E, ao longo daqueles anos, eu não tinha torrado uma quantia considerável naquele cartão?! Sei que guardar mágoa de cartão de crédito é tão patético e ridículo quanto ter raiva de geladeira -- mas não consegui superar o desgosto e, até hoje, fico sentida quando, por acaso, dou de cara com alguma correspondência antiga perdida pelas gavetas. Sou muito sentimental.

* * *

Não cheguei a desenvolver nenhuma relação tão intensa com qualquer outro cartão. Com a minha atual coleção, os motivos de fidelidade são pragmáticos, e estão relacionados, todos, à milhagem oferecida. Quando preciso de um pouco mais de milhas na Varig uso um, quando preciso de mais milhas na American uso outro; o Diners me oferece salas vip em diversos aeroportos, o que é uma mão na roda quando a Ponte Aérea atrasa.

Mas eu posso viver sem isso, caramba! Eu posso viver sem financiar tudo em muitas vezes sem juros, eu (acho que) posso viver sem milhagens e, sobretudo, posso viver sem sustos como a clonagem de que fui vítima. No ano passado, estabeleci como meta de Ano Novo voltar à forma; de lá para cá, perdi 12 quilos e já estou no meu peso certo. Se consegui fazer isso, vou conseguir, também, cortar os cartões da minha vida. Me aguardem! Relato completo na crônica do dia 27 de dezembro de 2007!

* * *

Reparem, na foto, na quantidade de algas na Lagoa. Já já os peixes começam a morrer, e aí as autoridades (ainda as há?) reagirão com o espanto de quem não sabia de nada...


(O Globo, Segundo Caderno, 7.11.2006)

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