14.7.05




Uma república de bananas


Entrei no táxi que é meu conhecido e, antes mesmo que pudesse dizer boa noite, ele pediu: "Dona Cora, a senhora me faz um favor, vamos conversar sobre a sua mãe". O taxista conhece Mamãe e é fã dos seus feitos esportivos, mas ainda assim estranhei e perguntei por quê. "Porque eu acho que ela é uma lição de vida e fico feliz quando falo em gente assim; mas há uma semana, todo mundo que entra neste táxi só quer falar da roubalheira do governo, e eu não agüento mais falar nisso, perco o humor, chego em casa e saio gritando com os meninos." Achei o pedido perfeitamente compreensível e, dessa forma, conversando sobre a minha Mãe, campeã de natação aos 81 anos, pessoa sob todos os aspectos admirável e exemplar, percorremos, reconfortados, o trajeto entre o jornal e a Lagoa.

A verdade é que ninguém agüenta mais o noticiário político. Ninguém agüenta mais tanta sujeira, tanta pouca vergonha, tão pouco caso com o dinheiro e a inteligência dos contribuintes. Até os aspectos cômicos da chanchada são nojentos. Habeas corpus preventivo, cem mil dólares na cueca, empresa de games a cinco milhões, malas de dinheiro que a polícia federal leva onze horas (onze horas!!!) para contar -- mas que mundo é esse?! Que gente é essa?! Como é que consegue se olhar no espelho, dormir, encarar os familiares?!

Como é que ainda estão soltos?!

* * *

Parte do problema, acho eu, está em Brasília. Não a metáfora política, mas o ponto geográfico: para convencer o funcionalismo a se mudar para a então inóspita capital, Juscelino Kubistchek corrompeu toda a estrutura do serviço público. Quem estivesse disposto a fazer o sacrifício da mudança ganhava casa, ajuda de custo e salário em dobro. A partir daí, a cidade perdeu qualquer noção real de dinheiro ? aquele dinheirinho honesto e suado, com o qual temos que viver você, eu e o taxista revoltado. Daqueles tempos para cá Brasília recebeu muita gente direita, que foi para lá de livre e espontânea vontade e vive, a duras penas, à sombra dos palácios milionários; mas aí o estrago moral já estava feito.

Nunca mais político algum precisou pôr a mão no bolso para pagar o que quer que fosse. Todos têm habitação de alto luxo, comida e roupa lavada. Nós, contribuintes otários, trabalhamos para pagar aluguel ou prestação da casa, contas de água, luz e telefone, empregada, escola, roupa, comida, médico, dentista, viagens, transporte; eles trabalham para... para que mesmo, hein?

A casa e as contas deles são pagas por nós; no congresso há ótimo atendimento médico e odontológico, na cidade há clubes grátis para todos e cada deputado ou senador tem mais empregados do que ocupação para eles. No primeiro escalão, despesas de todo e qualquer tipo podem ser debitadas na famigerada "representação", de lençóis de linho egípcio a sites pornô.

Além disso, como Brasília é longe de tudo, todos têm direito a passagens, correio, telefone e transporte, para não falar naquelas férias obscenas conhecidas por "recesso parlamentar".

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Qualquer um que seja alguém em Brasília perdeu, há tempos, a idéia do que é viver do seu próprio dinheiro. Para a politicalha, a cidade é uma espécie de jogo de monopólio, bancado por terceiros, onde circula uma moeda sem qualquer lastro na realidade.

É por isso que eles falam em milhões com tamanha desfaçatez, por isso não se envergonham de ganhar mensalões ou de andar com alguns trocados na cueca; por isso o presidente Lula acha perfeitamente normal o filho receber cinco milhões de reais da Telemar a título de parceria numa empresa de games que nem página na internet tem. Afinal, o que é isso, cinco milhões de reais?

Eu confesso que não sei: minha imaginação de assalariada não chega até lá. Mas em Brasília, pelo visto, não é nada, apenas uma abstração, tão irrelevante para efeitos práticos e morais quanto os R$ 300 do salário mínimo ou os 27,5% de imposto descontados em folha dos ricaços que, neste país, ousam ganhar mais de R$ 2.326 (ou seja: menos de um décimo de mensalão).

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Enquanto escrevo, terça-feira à noite, as últimas notícias dão conta de que o deputado João Batista Ramos da Silva, aquele que foi pego com dez milhões (quase duas Gamecorps!), teria sido expulso do PFL por "sujar a imagem do Partido".

Como é que é?! Sujar a imagem do PFL?!

Mas não estou dizendo?!

Brasília vive, definitivamente, numa realidade paralela.

Só pode ter sido lá, nesta outra realidade, que a CNT/Sensus fez a pesquisa que indica que a popularidade do presidente Lula não foi afetada pela crise.

O pior é que ele é capaz de acreditar.


(O Globo, Segundo Caderno, 14.7.2005)

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