Uma república de bananas
Entrei no táxi que é meu conhecido e, antes mesmo que pudesse dizer boa noite, ele pediu: "Dona Cora, a senhora me faz um favor, vamos conversar sobre a sua mãe". O taxista conhece Mamãe e é fã dos seus feitos esportivos, mas ainda assim estranhei e perguntei por quê. "Porque eu acho que ela é uma lição de vida e fico feliz quando falo em gente assim; mas há uma semana, todo mundo que entra neste táxi só quer falar da roubalheira do governo, e eu não agüento mais falar nisso, perco o humor, chego em casa e saio gritando com os meninos." Achei o pedido perfeitamente compreensível e, dessa forma, conversando sobre a minha Mãe, campeã de natação aos 81 anos, pessoa sob todos os aspectos admirável e exemplar, percorremos, reconfortados, o trajeto entre o jornal e a Lagoa.
A verdade é que ninguém agüenta mais o noticiário político. Ninguém agüenta mais tanta sujeira, tanta pouca vergonha, tão pouco caso com o dinheiro e a inteligência dos contribuintes. Até os aspectos cômicos da chanchada são nojentos. Habeas corpus preventivo, cem mil dólares na cueca, empresa de games a cinco milhões, malas de dinheiro que a polícia federal leva onze horas (onze horas!!!) para contar -- mas que mundo é esse?! Que gente é essa?! Como é que consegue se olhar no espelho, dormir, encarar os familiares?!
Como é que ainda estão soltos?!
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Parte do problema, acho eu, está em Brasília. Não a metáfora política, mas o ponto geográfico: para convencer o funcionalismo a se mudar para a então inóspita capital, Juscelino Kubistchek corrompeu toda a estrutura do serviço público. Quem estivesse disposto a fazer o sacrifício da mudança ganhava casa, ajuda de custo e salário em dobro. A partir daí, a cidade perdeu qualquer noção real de dinheiro ? aquele dinheirinho honesto e suado, com o qual temos que viver você, eu e o taxista revoltado. Daqueles tempos para cá Brasília recebeu muita gente direita, que foi para lá de livre e espontânea vontade e vive, a duras penas, à sombra dos palácios milionários; mas aí o estrago moral já estava feito.Nunca mais político algum precisou pôr a mão no bolso para pagar o que quer que fosse. Todos têm habitação de alto luxo, comida e roupa lavada. Nós, contribuintes otários, trabalhamos para pagar aluguel ou prestação da casa, contas de água, luz e telefone, empregada, escola, roupa, comida, médico, dentista, viagens, transporte; eles trabalham para... para que mesmo, hein?
A casa e as contas deles são pagas por nós; no congresso há ótimo atendimento médico e odontológico, na cidade há clubes grátis para todos e cada deputado ou senador tem mais empregados do que ocupação para eles. No primeiro escalão, despesas de todo e qualquer tipo podem ser debitadas na famigerada "representação", de lençóis de linho egípcio a sites pornô.
Além disso, como Brasília é longe de tudo, todos têm direito a passagens, correio, telefone e transporte, para não falar naquelas férias obscenas conhecidas por "recesso parlamentar".
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Qualquer um que seja alguém em Brasília perdeu, há tempos, a idéia do que é viver do seu próprio dinheiro. Para a politicalha, a cidade é uma espécie de jogo de monopólio, bancado por terceiros, onde circula uma moeda sem qualquer lastro na realidade.É por isso que eles falam em milhões com tamanha desfaçatez, por isso não se envergonham de ganhar mensalões ou de andar com alguns trocados na cueca; por isso o presidente Lula acha perfeitamente normal o filho receber cinco milhões de reais da Telemar a título de parceria numa empresa de games que nem página na internet tem. Afinal, o que é isso, cinco milhões de reais?
Eu confesso que não sei: minha imaginação de assalariada não chega até lá. Mas em Brasília, pelo visto, não é nada, apenas uma abstração, tão irrelevante para efeitos práticos e morais quanto os R$ 300 do salário mínimo ou os 27,5% de imposto descontados em folha dos ricaços que, neste país, ousam ganhar mais de R$ 2.326 (ou seja: menos de um décimo de mensalão).
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Enquanto escrevo, terça-feira à noite, as últimas notícias dão conta de que o deputado João Batista Ramos da Silva, aquele que foi pego com dez milhões (quase duas Gamecorps!), teria sido expulso do PFL por "sujar a imagem do Partido".Como é que é?! Sujar a imagem do PFL?!
Mas não estou dizendo?!
Brasília vive, definitivamente, numa realidade paralela.
Só pode ter sido lá, nesta outra realidade, que a CNT/Sensus fez a pesquisa que indica que a popularidade do presidente Lula não foi afetada pela crise.
O pior é que ele é capaz de acreditar.
(O Globo, Segundo Caderno, 14.7.2005)
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