6.1.05





Ainda a tsunami

Se a humanidade tivesse juízo, dedicava-se ao
Grande Mistério: como é que os bichos escaparam?


Não há outro assunto. A despeito da overdose de más notícias com que nos brinda, todo santo dia, o mundo globalizado, nunca se viu nada como essa tsunami, que varreu do mapa tantos lugares e pessoas. Segundo o Guinness Book, já aconteceram terremotos e inundações diversos ao longo dos séculos em que maior número de vítimas foi registrado -- por acaso, sempre na China, campeã absoluta de calamidades. Mas a China é longe, e mais longe ainda é a distância do tempo, que transforma qualquer desgraça em simples curiosidade histórica.

A onda horrenda do fim do ano foi a primeira catástrofe de proporções bíblicas a ser devidamente registrada, filmada e transmitida, em tempo real, para todos os cantos do planeta. Mal terminara de sugar a vida para o mar, já sugava todas as atenções para os jornais, para a Internet, para a televisão. Diante das notícias que vêm da Ásia, tudo se torna trivial, por trágico que seja, dos homens bomba que explodem no Iraque ao incêndio em Buenos Aires.

É que nada que seja feito pela mão do homem consegue superar, em potencial de espanto, a natureza em fúria. No mal que os homens fazem há sempre um propósito ou uma ignorância reconfortantes, ou seja: a estupidez e a maldade trazem as suas próprias respostas embutidas e, com elas, uma centelha minúscula de esperança. Hoje, o horror da destruição; amanhã, quem sabe, a descoberta da paz e da harmonia.

Enquanto assistíamos à queda das torres do World Trade Center, ignorávamos quem era o autor do atentado ou o que o levara a isso; mas ninguém duvidava de que ali estava uma expressão suprema da perversidade humana, este horrível defeito que trazemos de nascença mas que -- olha a esperança aí -- um dia, talvez, se possa consertar.

Que resposta nos traz, porém, um maremoto? Ele é inocente e puro, não existe como pessoa física, jurídica ou celestial; não tem segundas intenções, ou reivindicações de qualquer espécie. Ao mesmo tempo, ao contrário de tantas inundações e deslizamentos de terra, não pode sequer ser atribuído ao nosso descaso com o meio-ambiente.

E aí, em última instância, a tsunami mexe também com a nossa orgulhosa suposição de que, mais cedo ou mais tarde, a humanidade dará um jeito de destruir o planeta. Pois o planeta acaba de dar um chega-pra-lá na humanidade e avisar que dispensa o auxílio; ele tem plena capacidade de se destruir sozinho, obrigado. E não está nem aí.

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A quantidade de mistérios, dúvidas e questões filosóficas que a tsunami jogou na praia é proporcional aos estragos que fez. Nem é necessário chegar à existência, suposta bondade e motivações do Grande Arquiteto; só o fenômeno dos animais, salvando-se sabe-se lá como, já é motivo suficiente para mais reflexão e questionamento do que tudo o que se escreveu do 9/11 para cá a respeito das relações entre Ocidente e Oriente.

Apesar de todo o progresso tecnológico, pode ser que a chave da nossa sobrevivência como espécie esteja na compreensão deste singular episódio. Que misteriosa qualidade de previsão é esta que os animais conservam e que nós perdemos? Terão todos eles a mesma capacidade de fugir a tempo dos terremotos, ou os que não a tem sabem ler, nos outros, os sinais do perigo? Como foi que nos afastamos dessa maneira dos demais habitantes do planeta? Será que foi isso que aconteceu com os dinossauros? Seremos nós, humanos, os próximos dinossauros?

A prova definitiva de que há algo profundamente errado conosco é a pouca atenção que se deu a isso: apenas uma notícia solta, sem continuidade ou investigação. Daqui a alguns meses, quando Hollywood estiver lançando um filme sobre a tsunami servindo de pano de fundo para um romance entre Leonardo Di Caprio e Kate Winslet, pode ser que a National Geographic esteja levando ao ar um documentário sobre o Mistério dos Bichos. Deve fazer muito sucesso, sobretudo entre as crianças, como mais uma das Maravilhas do Reino Animal; mas logo os adultos estarão se dedicando a assuntos supostamente mais sérios.

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Enquanto isso, neste país abençoado, que não tem tsunamis nem escala Richter, passou praticamente despercebida a notícia de que o Marqueteiro Mor comemorou a chegada do Ano do Galo com uma festa de arromba na sua rica mansão de Salvador. Para o ministro Antonio Palocci e o senador Aloizio Mercadante, que muito se divertiram na companhia de Duda Mendonça e de seus Romanée Conti, o crime obviamente compensa.

Não houve notícia de onde passaram o réveillon os intrépidos policiais que prenderam Duda na rinha de galos; a eles, no entanto, desejo um Feliz Ano Novo. Quem sabe um dia a gente tenha a satisfação de viver num Estado de direito, em que a lei seja igual para todos, e em que os criminosos sejam punidos, em vez dos policiais que os investigam.

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Elas chegam ao entardecer, como as de verdade, assim que o quiosque é aberto. São as capivaras coloridas do Pojucan, cada uma mais linda que a outra, alegrando o Palaphita Kitch, no Corte do Cantagalo. O espírito carioca, apesar de tudo, sobrevive. Viva!


(O Globo, Segundo Caderno, 6.1.2005)

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