11.11.04




Adeus, "Brasileirinho"!

Maria Bethânia despede-se no Canecão e cronista divaga, pensando no Napster e nas gravadoras


No comecinho de setembro recomendei aqui, aos 17 leitores do Xexéo (os meus 17 estavam de férias), que não perdessem, por nada!, o extraordinário ?Brasileirinho?, da não menos extraordinária Maria Bethânia ? disparado um dos shows mais lindos que já vi e, certamente, o mais afinado com o momento que vive o brasileiro, em geral, e o carioca, em particular, tão feridos na sua auto-estima.

O Brasil de "Brasileirinho", dizia eu e continuo dizendo, é o avesso da pocilga política, o oposto da boçalidade violenta e acachapante que nos corta os dias; é a pátria querida, o país do coração e das memórias que tanto amamos, e no qual, afinal, nos reconhecemos.

Pois depois de uma temporada paulista, "Brasileirinho" está de volta ao Canecão. São só três dias, a partir de amanhã. E aí -- definitivamente -- adieu, adiós, good-bye, porque a vida segue e há novos sons e novos caminhos a percorrer. "Brasileirinho" será, então, apenas uma lembrança na estante e no player , entre os outros CDs e DVDs.

Depois não digam que não avisei.

* * *

Quando Maria Bethânia foi contratada pela Biscoito Fino, em 2002, ouvi gente estranhando, achando que ir para uma gravadora independente era uma espécie de mau passo para quem, como ela, vinha de uma carreira vitoriosa nas grandes multinacionais, as famigeradas "majors". Nunca entendi este ponto de vista. Para mim, era exatamente o contrário; e mais uma prova da intuição fenomenal de Bethânia.

Tendo acompanhado de perto a luta que as "majors" travaram para liqüidar o Napster (a rede onde se trocavam arquivos de música pela internet), eu estava convencida, como ainda estou, de que elas são organismos fadados à extinção, por falta de agilidade e de visão.

* * *

Para quem ignora o sucedido: no Napster, que era uma única rede, situada num único e específico ponto da internet, alguns milhares de usuários, na maioria estudantes, trocavam músicas entre si. A maior demanda era, claro, pelo som da moda; mas posso assegurar que poucas vezes se viu tanta gente tão interessada em descobrir a música e a cultura de outros países do que naqueles servidores.

Durante aquele tempo feliz, conheci cantores gregos, espanhóis, africanos; recomendei uma quantidade de canções brasileiras e até alguns fados para desconhecidos que, dos pontos mais distantes do planeta, batiam na minha janela virtual perguntando o que havia de bom para se ouvir na minha língua.

E lá -- só lá -- encontrei Domenico Modugno cantando "L?uomo in frack", depois de ter percorrido dezenas de lojas de discos italianas ao longo de tantas e tantas férias.

A verdade é que, para um imenso contingente de ouvintes, o Napster virou também a rede ideal para resgatar do descaso das gravadoras cardumes inteiros de intérpretes e repertórios esquecidos, presos em discos e fonogramas cuja reedição não oferecia suficientes atrativos comerciais.

Para as gravadoras, incapazes de perceber o que estava acontecendo por trás dos computadores, o que havia ali era única e exclusivamente uma coisa: pirataria. Conseqüentemente, apontaram contra o Napster a sua resposta padrão para qualquer ameaça -- o exército de advogados mais bem pagos do planeta. Foi uma luta feia e equivocada, bastante semelhante, guardadas as devidas proporções, à luta de Bush contra o terrorismo.

Primeiro resultado: graças à publicidade gerada pela repercussão do processo, o Napster, até então relativamente desconhecido, virou febre na internet -- e gente que sequer ouvira falar em MP3 viu-se, de um dia para outro, baixando música freneticamente.

Segundo resultado: assustados com a fúria assassina das gravadoras, os milhares de antigos e milhões de novos usuários se espalharam por dezenas de outros sistemas, todos parecidos com o Napster, mas sem a sua universalidade e centralização. Pior: uma multidão fugiu para os braços dos piratas de verdade, esses que vendem CD a dois real, e que seriam um alvo tão legítimo para a RIAA.

Terceiro resultado: em meio à batalha jurídica, a roupa suja das gravadoras acabou sendo lavada em público. Junto com a perseguição movida ao Napster e aos usuários, isso lhes valeu a antipatia eterna de seus principais consumidores. Tiro no pé é pouco.

* * *

Ora, neste cenário praticamente pós-apocalíptico, num mercado em que, além de tudo, a única preocupação parecia ser vender quantidades cada vez maiores de músicas cada vez piores, o espaço para as gravadoras independentes foi se ampliando. Livres dos efeitos colaterais da Grande Guerra do Napster, caprichosas e sem medo de nadar contra a corrente, elas são, hoje, a salvação de quem quer ouvir o que quer ouvir -- e não o que as gravadoras querem que ouça.

Vejam o eclético catálogo da Biscoito Fino, por exemplo, para ficarmos apenas na que nos trouxe o inesquecível "Brasileirinho". Tem Olívia Byington, Zé Renato, Yamandú Costa, Paulo Moura, Wagner Tiso, Miúcha, Billy Blanco, Bibi Ferreira e mais uma constelação de sonho, sem falar na prata da casa, Francis e Olivia Hime -- uma de suas donas, junto com Kati Almeida Braga. Logo terá quase todo o Tom Jobim, junto com a Jobim Music.

É um verdadeiro chão de estrelas, a Elenco do (ainda) novo milênio.


(O Globo, Segundo Caderno, 11.11.2004)

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