25.11.04





Diário de bordo

Dois dias em Rondônia, no set de "Mad Maria"

Terça-feira, 16 de novembro: Porto Velho, para quem espera selva fechada ou mesmo cidades como Manaus ou Belém, mergulhadas em lendas e no imaginário amazônico, é uma surpresa. É pequena, simpática e tem cantos que, não sei por quê, lembram a Ilha do Governador dos meus tempos de criança. O calor está perfeitamente razoável, mas todos são unânimes em dizer que hoje é um dia excepcional.

Amanhã saímos às sete, gravações em Santo Antônio. A produção é meticulosa e tem um quadro de avisos enorme no hall. Diz o seguinte:

Figuração:
60 barbadianos
02 espanhóis mortos
05 espanhóis
25 chineses
15 diversas raças

Gostei desses 02 espanhóis mortos. Se houver papel para uma centro-européia morta, vou me oferecer; é a única coisa que me sinto capaz de fazer em termos de interpretação. Notem que não é "morrendo", é mortos mesmo.

À tarde dormi e saí sozinha para um passeio ao pôr-do-sol. Andei bastante. Os pontos altos da cidade, numa primeiríssima impressão:

-- O cheiro das ruas. Há árvores frutíferas por toda a parte, e o cheiro é uma glória.

-- O sol enorme e avermelhado do poente.

-- A hospitalidade das pessoas.

Imaginem que comecei a conversar com três moças perto do rio e, a certa altura, perguntei se sabiam onde podia alugar uma bicicleta. Aqui não se alugam bicicletas, mas uma delas logo se prontificou a me emprestar a sua, que usa pouco. Quem vem da selva de asfalto estranha a generosidade, a gentileza.

* * *

Quarta-feira, 17 de novembro: Tive que acordar às seis, tendo ido dormir às duas; fui para um lugar tão quente que, misteriosamente, ficar ao sol era melhor do que ir para baixo das árvores; descobri que repelente para insetos não funciona com formiga. E, querem saber? Adorei cada minuto!

A produção de "Mad Maria" é uma aventura em si mesma. Se cuidar das minúcias de um filme de época já é complicado em estúdio, imaginem o que é em plena selva amazônica! Estou impressionada com a paciência de todos, do diretor aos figurantes; e cheguei à conclusão de que eu não serviria sequer para fazer um dos espanhóis mortos. Os pobres têm que ficar imóveis ao sol, derretendo, enquanto a cena se repete e se repete e se repete. Quando, afinal, os gestos ficam perfeitos, as falas entram nos lugares certos, nenhuma nuvem atrapalha e tudo se encaixa direitinho, um problema técnico qualquer estraga tudo. Eu teria um ataque; mas Ricardo Waddington, que tem fama de ser terrível, diz apenas "Raiva. Raiva. Ódio. Ódio. Grrrrrrrrrrr." com voz de desenho animado.

Encontrar a velha locomotiva de 1909 em pleno funcionamento é arrepiante. O trabalho de restauração foi feito por quatro velhinhos que a produção encontrou em Guajará-Mirim, e que ainda se lembram do que faziam há décadas, quando cuidavam da sua manutenção. Sem querer, a Globo descobriu uma espécie de Buena Vista Social Club dos ferroviários.

* * *

Ana Paula Arósio, que é, indiscutivelmente, um dos bípedes mais lindos de se ver, fotografa tudo, o tempo todo. Sei o que é isso. Para nossa decepção, porém, com exceção de insetos, há pouquíssimos bichos na área do set, vizinha a uma pedreira. Na hora do almoço, alguém lhe traz uma linda lagarta azul de presente e ela fica no auge da felicidade. Pronto. Como não gostar de alguém que sabe apreciar devidamente uma lagarta azul?!

* * *

Enquanto isso, Amora Mautner, minha amiga querida e uma das diretoras da minissérie, enfrenta um problema exótico. Tem que filmar uma cena de sucuri que já aconteceu -- sem a sucuri -- num lago escuro. A sucuri, no entanto, é empréstimo do zoológico e não pode sair da cidade. Como fazer com que a água de uma piscina adquira a mesma estranha tonalidade da água daquele lago?

Testes, testes e mais testes.

Solução: pinta-se o fundo de um certo tom de marrom e junta-se uma determinada quantidade de corante à água. Mistura-se bem, acrescenta-se sucuri a gosto e serve-se ao telespectador, que sequer desconfiará do trabalho que foi inserir a cobra na história.

* * *

Juca de Oliveira está chocado com o desmatamento que tem visto ao longo dos últimos meses. Está igualmente revoltado com o que aconteceu com a Madeira-Mamoré, e acha que alguém tinha que ser responsabilizado por isso: como se assassina de forma tão perversa uma estrada de ferro e, de quebra, a auto-estima de toda uma região?

Concordo inteiramente. O sucateamento desta ferrovia teve requintes de crueldade que nós, do Rio de Janeiro, conhecemos bem. Aqui também o Palácio Monroe foi derrubado sem qualquer razão objetiva, exceto o capricho malsão de um general no poder. Juca pensa ainda no que se poderia fazer para chamar a atenção do país para o que acontece aqui. Há tantas queimadas que não se vê mais um céu claro em Rondônia; a floresta desaparece diante de nossos olhos, literalmente, vítima da cobiça de gente que não a entende nem respeita.

Rezo para que um bom espírito o ilumine, mostrando como chegar ao coração de quem não tem alma.


(O Globo, Segundo Caderno, 25.11.2004)

Mais uma coluna que os leitores do blog já conhecem...

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