20.10.03



Xerox: a vingança dos nerds

Imaginem bolinhas minúsculas como grãos de poeira, brancas de um lado e pretas do outro. Presas entre duas folhas de plástico fininhas, elas flutuam numa suspensão oleosa, e reagem a impulsos elétricos, enviados por um computador, que as fazem girar, expondo ora o lado branco, ora o lado preto. Com isso, formam desenhos na superfície do plástico: tipicamente, letras.

Aí está uma das fórmulas do papel eletrônico, espécie que desafia a criatividade de cientistas nos principais laboratórios de pesquisa tecnológica do mundo, estimula a imaginação de jornalistas e, provavelmente, causa pesadelos aos fabricantes de papel. No famoso Palo Alto Research Center (PARC) — de onde saiu, a rigor, a computação pessoal como a conhecemos hoje — ele atende pelo nome de SmartPaper.

A invenção por trás de seu funcionamento, chamada Gyricon, é um dos grandes trunfos da Xerox como geradora de inovações. Como tal, era uma das atrações de um evento que reuniu num hotel em São Francisco, na semana passada, jornalistas do mundo inteiro e cientistas dos principais laboratórios da empresa — disposta a demonstrar que, apesar das acusações de irregularidades financeiras de três anos atrás, das turbulências administrativas de diversos tipos e dos tempos bicudos na bolsa de valores, continua tinindo quando o assunto é inovação tecnológica.

Para quem gosta de tecnologia e de cientistas inventivos, mas desconfia de contadores e administradores em geral, a inquestionável demonstração de força do “R&D” (research and development, ou pesquisa e desenvolvimento) da Xerox tem um sabor todo especial. É bom ver que não há mágica financeira capaz de superar, em credibilidade e resultados, um sólido time de cérebros.

Do papel eletrônico às imagens mutantes

O SmartPaper já é uma realidade, mas ainda não para quem espera ler o jornal diário enroladinho num canudo eletrônico. Sua aplicação imediata é em quadros de avisos para corporações, lojas e escolas. Parece uma tela de cristal líquido, mas não é brilhante, pode ser lido de qualquer ângulo e... não é atraente!

— Bom, ninguém vai querer roubar uma tela dessas, vai? — explica Bob Street, um dos responsáveis pelo seu desenvolvimento. Ele tem razão: por inteligente que seja, o SmartPaper não é um objeto de cobiça. — Além disso, esse sistema é mais econômico: ao contrário de uma tela convencional, usa energia apenas quando é redesenhado.

A Xerox ou, melhor dizendo, a Gyricon, empresa criada para comercializar a tecnologia, já negocia a sua venda com cadeias de lojas. Quais? Ah, isso ainda é segredo.

Mas o SmartPaper foi apenas uma das estrelas do show, que tinha novidades tão novas que, a rigor, ninguém sabe ainda muito bem para que servem. Por exemplo, algo chamado illuminant multiplexed imaging ou, mais simplesmente, switch-a-view , que permite a impressão de imagens diferentes, uma em cima da outra, visíveis, cada qual, de acordo com a cor da luz ambiente.

Sucesso garantido em camisetas mutantes para festinhas, imagino; ou, como propõe Robert Loce, principal cientista do Wilson Center for Research and Technology (laboratório da Xerox em Webster, Nova York) livros infantis, embalagens, promoções. É uma linda e divertida invenção, e nem por isso menos interessante: afinal, quem diz que todo cientista tem que salvar (ou detonar) o mundo?

O caso desta invenção, aliás, é particularmente curioso. A principal preocupação de quem trabalha com cores é descobrir formas de fazer com que tenham a mesma aparência, independentemente da luz sob a qual são vistas. Pois o switch-a-view nasceu desta preocupação virada pelo avesso: quão diferentes as cores podem ficar sob diferentes luzes?

Um laboratório onde se fez história — e folclore

O PARC, verdadeiro coração do Vale do Silício, ficou famoso na história da tecnologia não só pelas invenções que saíram de lá como pelas que não saíram: a interface gráfica, o mouse, a Ethernet... a lista é enorme, e o folclore também. A Xerox estava tão entretida no negócio das copiadoras que deixou escapar essas tecnologias preciosas, que fizeram a fortuna de outras empresas.

Mais tarde, escaldada, passou a patentear tudo e, eventualmente, a criar pequenas empresas separadas para comercialização das tecnologias que não estavam diretamente vinculadas às suas atividades principais.

De qualquer forma, o fato é que essa história, contada e recontada milhões de vezes, deu ao PARC — e, por tabela, à Xerox — uma imagem que vale mais do que se pode imaginar. O laboratório continua sendo uma instituição quase sagrada, um centro de excelência, um ninho de cientistas extraordinários que chegaram ao Olimpo da sua profissão.

Por causa de uma série de problemas que, há três anos, quase levam a Xerox à falência, ele deixou de ser propriedade exclusiva da empresa. Hoje chama-se Palo Alto Research Center Incorporated, e desenvolve pesquisa também para outros clientes. Tem 250 empregados, dos quais 180 pesquisadores, divididos em seis laboratórios que tocam, simultaneamente, uns 50 projetos.

Um JPEG com todo o jeito do gato de Alice

Desses projetos, um dos mais compreensíveis à primeira vista é o que envolve uma nova forma de JPEG, o clássico padrão de formato de compressão de imagens que todos conhecemos tão bem.

O JPEG 2000, que corrige falhas do JPEG e trabalha com um nível de compressão consideravelmente maior, é desenvolvido pelo Joint Photographic Experts Group (daí seu nome), e é a base para o projeto da Xerox, que o associa à sua tecnologia MRC ( Mixed Raster Content ). Essa mistura permite que diversos elementos de uma mesma imagem web sejam tratados de forma diferente, o que agiliza enormemente a vida do ser conectado. Dependendo de onde clique, o usuário poderá ver áreas mais ou menos definidas, de acordo com seu interesse.

Por exemplo: ele quer encontrar, num mapa do Brasil, informações sobre o Rio. Hoje, sua única opção é ver o mapa num thumbnail e, depois, esperar que carregue todo — para, então, ir ao ponto que procura. Com a nova tecnologia, em vez de lutar com a visualização de miniaturas e o tempo de download, bastará a ele clicar, numa imagem em tamanho grande, sobre a área onde se encontra o Rio. Somente ela será carregada em alta resolução.

Robert Buckley, especialista em arquivos digitais de imagens, resume a questão de forma simplíssima:

— É como o gato da Alice, ficando em foco na árvore.

(O Globo, Informática etc., 20.10.2003)

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