Notícias de um país em guerra
(Sobrevoando os Estados Unidos)
Quando o telefone tocou no meu ouvido, às seis da manhã em ponto, e uma voz artificialmente eufórica exclamou, na outra ponta, “Good morning, Ms. Rónai, this is your wake-up call!” achei que era trote. Só podia ser. Eu tinha acabado de adormecer. Estava escuro do lado de fora. E chovia. E fazia um frio do cão.
Mas não era trote. Eu tinha exatamente 45 minutos para me vestir, terminar de empacotar as coisas, tomar café, fazer check-out e sair para o aeroporto. Consegui dar conta de quase tudo, menos de tomar café, porque o restaurante do Marriott Hotel, em Portland, Oregon, só abre às sete — coisa que eu, mais do que ninguém, compreenderia, não fosse pelo detalhe de que não há praticamente vôo que saia daquela cidade depois das oito.
Este horário, aliás, é um problema típico da Costa Oeste americana: por causa da diferença de fuso horário para o resto do país, os vôos saem sempre cedíssimo. E os hóspedes do Marriott saem sempre sem café da manhã.
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De acordo com as últimas pesquisas de opinião, no entanto, parte da população começa a achar que, talvez, quem sabe, a guerra contra o Iraque não tenha sido uma idéia tão boa quanto parecia. Mas não porque há milhares de mortos e um país destruído do outro lado do mundo, mas sim porque aqueles ingratos, que não sabem apreciar o favor que lhes foi feito, continuam matando americanos, onde já se viu?!
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Estou nos Estados Unidos há quase uma semana. Na vinda me encontrei, no avião, com um amigo que vive no circuito das conferências internacionais. Perguntei se anda viajando muito. Sim, disse ele, muito. Para a Europa, basicamente, e para os países da América Latina. Para cá, porém, essa é a primeira vez no ano, e provavelmente a última.
Não é um problema de mercado, já que, com Lula na Presidência, há interesse pelo Brasil. O problema é ele, que não tem mais qualquer vontade de vir para esses lados.
Entendo perfeitamente. Eu também não venho desde o começo do ano. Deixou de ser bom. Não há mais prazer nessa viagem, que hoje fazemos apenas por trabalho, por um resto de curiosidade malsã ou, eventualmente, por laços afetivos: temos, ambos, filhos morando aqui. É impossível deixar de ver como uma piada de mau gosto o cartaz que, na imigração, diz: “Bem-vindo aos EUA”.
Mentira. Ninguém é mais bem-vindo a este país. Somos todos inimigos em potencial, do momento em que embarcamos e nos sujeitam a toda a sorte de constrangimentos, ao momento em que voltamos, sobretudo se viajamos com uma companhia americana. Os comissários de bordo, que antes nos destratavam por simples vocação ou esporte, agora nos destratam por obrigação. Contratual e, vai ver, “patriótica”.
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Desde que os republicanos tomaram o poder e transformaram o país num estado totalitário, as relações humanas andam complicadas. As pessoas se fecharam em grupos, sobretudo as que ousam discordar da política vigente. Sim, é verdade, há passeatas acontecendo aqui e ali nas grandes cidades; mas no interior, no dia-a-dia, nos encontros entre amigos ou no papo ocasional com o desconhecido no trem ou com a senhora na fila, pesa a sombra das palavras medidas, a sensação de pisar em ovos semânticos e ideológicos.
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Para os democratas que, até hoje, sofrem com o resultado das eleições e com o calamitoso governo Bush, uma das poucas alegrias dos últimos tempos foi a queda de Rush Limbaugh. Para dar uma idéia do personagem: seu último contrato, assinado com a PRN por nove anos, é de US$ 285 milhões, e o “Rush Limbaugh Show”, transmitido por cerca de 600 emissoras, alcança mais de 20 milhões de ouvintes em todo o país.
Espécie de crossover de Ratinho e Gugu Liberato em termos de charme, cultura e credibilidade, mas dedicado à política e extremamente influente (quando visitou a Casa Branca, Bush pai carregou suas malas até o quarto), Limbaugh tornou-se o radialista mais bem pago e de maior audiência da História como porta-voz da direita linha-dura. Aquela que, entre outras coisas, acha — e diz — que viciado bom é viciado morto.
Pois na sexta passada, depois das denúncias de uma ex-empregada que fazia hora extra como aviãozinho, ele admitiu, publicamente, que fazia uso ilegal de opiáceos, disfarçados em remédios contra a dor. Os jornais e revistas mais liberais estão deitando e rolando.
Afinal, as boas notícias andam escassas.
(O Globo, Segundo Caderno, 16.10.2003)
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