22.10.03











Algumas fotos de Detroit. Só estão entrando agora, porque postei o texto do jornal, e as fotos estavam aqui em casa.

Impressões de viagem


Esplendor e decadência de um sonho americano


Um dia, o francês Antoine de la Mothe Cadillac deu com um recanto às margens de um rio que lhe pareceu ideal para a criação de um entreposto de comercialização de peles. Ficava entre os Estados Unidos e o Canadá, e era servido de amplas possibilidades de transporte fluvial. Corria (devagar) o ano de 1701, a ecologia ainda não tinha sido inventada, todo mundo achava perfeitamente natural o uso de peles. De modo que o vilarejo, chamado por Cadillac de Ville D’Etroit (a cidade do estreito), foi crescendo. Quando, em 1763, o cacique Pontiac declarou guerra aos caras-pálidas, o lugar já se chamava, pura e simplesmente, Detroit. Logo alguém percebeu que juntar Cadillac e Pontiac era um destino.

Com a criação da Ford Motor Company em princípios do século XX, Detroit ganhou projeção internacional como capital mundial do automóvel. Foi a primeira cidade a ter uma estrada asfaltada, um sinal de trânsito e um shopping center. Em menos de 40 anos, com mais de dois milhões de habitantes, desemprego inexistente e mansões e edifícios luxuosos brotando por toda parte, tornou-se uma das cidades mais ricas dos Estados Unidos, e uma das mais famosas no mundo. Entre outras coisas, por ser berço da Motown, a surpreendente gravadora que revelou talentos como Martha e as Vandellas, Marvin Gaye, Stevie Wonder, The Four Tops, Diana Ross e as Supremes, o Jackson Five.

Mas Detroit tornou-se, também, uma das cidades mais explosivas do país, com conflitos raciais cada vez mais freqüentes e violentos. Em 1967, a maior dessas conflagrações deixou 43 mortos e um rastro de destruição do qual Detroit nunca mais se recuperou. Empresas, negócios e a classe média branca fugiram espavoridos para os subúrbios. Logo em seguida, os carros japoneses conquistaram o mercado e a indústria automobilística nacional entrou em recessão.

Hoje Detroit é praticamente uma cidade fantasma, inóspita, assustadora. Muitos edifícios da época de ouro estão abandonados. Outros foram ocupados por mendigos. A sujeira é universal. Montes de lixo por toda parte. Rua após rua, o que se vê são lojas fechadas, ruínas, escassos sinais de vida. Na antiga estação ferroviária, que deve ter sido uma beleza, não sobrou uma vidraça inteira para
contar a história.

Para nós, brasileiros, que convivemos diariamente com esta miséria de Terceiro Mundo, é desconcertante essa outra miséria, nascida do fausto, vicejando, sórdida e brutal, em restos de edifícios de antigo luxo.

Há um grande esforço para reerguer Detroit por parte das autoridades e de setores da comunidade. A sinfônica é famosa no mundo inteiro, um dos grandiosos cinemas do passado foi restaurado, os Tigers têm um estádio de beisebol estalando de novo. A cidade oferece incentivos de toda espécie para empresas que queiram se estabelecer lá — algumas têm aceitado o desafio.

Por isso, aqui e ali, no meio das ruínas e dos prédios vazios ou subaproveitados, ergue-se uma construção moderna, limpa, destoando incrivelmente do resto. A seu lado, eventualmente, uma lanchonete, ou um comércio miúdo num quarteirão policiado. As pessoas que trabalham nessas empresas — meu filho é uma delas — mal e mal saem dos escritórios, e fazem de tudo para ir para casa antes que anoiteça.

A despeito do que dizem os guias de turismo e o website oficial da cidade, o
pessimismo e a falta de perspectiva angustiam a tudo e a todos. Detroit luta não apenas contra o seu passado, mas também contra o clima ingrato — invernos pavorosos, verões senegaleses. E luta, sobretudo, contra cidades menos marcadas pela História, como Portland (Oregon) ou Milwaukee (Wisconsin) que, com notáveis resultados, estão fazendo de tudo para atrair jovens empreendedores.

Se algum dia os Estados Unidos conseguirem reconstruir Bagdá, deviam topar Detroit como desafio seguinte.

* * *

Mudando de assunto e de hemisfério: vi a capivara de novo! E fotografei! E — tambores rufando, s’il vous plaitnão é a mesma capivara!!!

Sou péssima fisionomista, mas boa fucinhonista. Quer dizer: não tenho memória alguma para pessoas, mas de bichos me lembro sempre bem. E garanto que a
capivara do outro dia era diferente: maior e (ainda que a diferença possa ser atribuída à luz, ao horário e ao fato dela estar molhada) mais escura.

A trama se adensa.

Recebi mais mensagens sobre a capivara, todas excelentes. Vou voltar ao assunto, com certeza. No entrementes (!) procuro alguém que me explique o mistério da capivara da Lagoa.

Perdão: capivárias.


(O Globo, Segundo Caderno, 23.10.2003 -- sim, você lê no blog de hoje o que vai ler no jornal de amanhã!)

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