Últimos vôos
Gentilezas e elegâncias perdidasNa sexta-feira passada o Concorde fez seu último céu. Lá se foi uma das poucas aeronaves comerciais verdadeiramente legendárias, incompatível com estes tempos de aeroportos hostis e talheres de plástico. É triste ver um sonho indo para os museus de aviação, para as gavetas da História. Para mim, o Concorde será sempre mais do que um lindo avião: por mais longe que a vida me leve, ele permanecerá sempre como uma das minhas melhores lembranças.
Eu estava em Paris, fazendo as malas para ir para Nova York no dia seguinte, quando o telefone tocou. Era um funcionário da Air France, perguntando se eu queria ir de Concorde.
— O senhor está usando o verbo errado. Querer eu quero, mas também quero um Mercedes e um pequeno veleiro na Martinica.
— É convite nosso, estamos oferecendo um upgrade . Grátis.
Um upgrade grátis... na Air France?! Esquisito, muito esquisito. Perguntei o que estava acontecendo.
— Um cliente nosso, que toda semana voa para Nova York com o Concorde, não pode viajar amanhã de manhã. Poderia ir à tarde, no horário em que a senhora vai, mas o vôo está lotado. Como a senhora é a única passageira que está viajando sozinha na primeira classe, propomos uma troca: a senhora vai às 11h, no Concorde, e ele vai no seu lugar, às 14h.
— Ah, tudo bem, faço esse favor à Air France. Digo mais: sempre que precisarem de alguém para resolver problemas dessa natureza, podem contar comigo.
Assim é que, no dia 25 de março de 1998, fiz minha primeira, única e inesquecível viagem de Concorde, junto com uma câmera Mavica F5. Que, por ser então uma alta novidade digital, chamou quase tanta atenção quanto o avião em si mesmo. E, entre outras coisas, me permitiu entrar na cabine de comando, já que o comandante, fotógrafo nas horas vagas, estava interessadíssimo na engenhoca .
* * *
Diferente mesmo era o “conjunto de obra”. A cabine, decorada por Andrée Putman, em tons de branco, contrastava com os uniformes coloridos das comissárias — disparado as comissárias mais chiques que já vi. A comida não só era extraordinária, como apresentada da forma mais requintada, numa louça simples e fina. Os talheres eram de prata, da Christofle. Só.
Lá na frente, na telinha em que os outros aviões mostram o mapa da viagem, o Concorde mostrava um marcador em números Mach. Mach 1 corresponde à velocidade do som, cerca de 1.224 Km/h. Não me lembro que velocidade o “meu” Concorde atingiu, mas tenho uma foto registrando 1.79 Mach. Tão rápido que, três horas e meia depois de decolarmos de Paris, aterrissávamos em Nova York. Prontos, graças à diferença de horário, para o segundo café da manhã no mesmo dia.
* * *
Geralmente, ela ganhava o páreo, fácil. Afinal, o povo da moda sabe viver melhor do que o da tecnologia, e faz seus encontros em Londres, Roma e Tóquio, ao passo que os nerds vão, ano após ano, para Las Vegas, Atlanta e Orlando. O Concorde me deu uma pequena vantagem. Temporária: poucos meses depois, ela voltou de Paris triunfante, com mil e uma novidades a respeito do George V, onde ficara hospedada. Ah, se eu visse as fechaduras...! E aquelas gavetas dos armários, todas divididinhas?!
Entre as tantas qualidades que eu admirava nela, Mara tinha um olho infalível para o detalhe. Sabia temperar as observações mais graves com o humor peculiar que era sua marca registrada. E tinha uma elegância atrevida, sempre inteligente, e tanto mais chique por nunca se levar inteiramente a sério.
Vai demorar muito até que eu me convença que, desta vez, minha amiga querida, a minha referência maior nas delicadezas que tornam esta vida mais gentil, não volta mais.
(O Globo, Segundo Caderno, 30.10.2003)
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