30.10.03



Últimos vôos

Gentilezas e elegâncias perdidas


Na sexta-feira passada o Concorde fez seu último céu. Lá se foi uma das poucas aeronaves comerciais verdadeiramente legendárias, incompatível com estes tempos de aeroportos hostis e talheres de plástico. É triste ver um sonho indo para os museus de aviação, para as gavetas da História. Para mim, o Concorde será sempre mais do que um lindo avião: por mais longe que a vida me leve, ele permanecerá sempre como uma das minhas melhores lembranças.

Eu estava em Paris, fazendo as malas para ir para Nova York no dia seguinte, quando o telefone tocou. Era um funcionário da Air France, perguntando se eu queria ir de Concorde.

— O senhor está usando o verbo errado. Querer eu quero, mas também quero um Mercedes e um pequeno veleiro na Martinica.

— É convite nosso, estamos oferecendo um upgrade . Grátis.

Um upgrade grátis... na Air France?! Esquisito, muito esquisito. Perguntei o que estava acontecendo.

— Um cliente nosso, que toda semana voa para Nova York com o Concorde, não pode viajar amanhã de manhã. Poderia ir à tarde, no horário em que a senhora vai, mas o vôo está lotado. Como a senhora é a única passageira que está viajando sozinha na primeira classe, propomos uma troca: a senhora vai às 11h, no Concorde, e ele vai no seu lugar, às 14h.

— Ah, tudo bem, faço esse favor à Air France. Digo mais: sempre que precisarem de alguém para resolver problemas dessa natureza, podem contar comigo.

Assim é que, no dia 25 de março de 1998, fiz minha primeira, única e inesquecível viagem de Concorde, junto com uma câmera Mavica F5. Que, por ser então uma alta novidade digital, chamou quase tanta atenção quanto o avião em si mesmo. E, entre outras coisas, me permitiu entrar na cabine de comando, já que o comandante, fotógrafo nas horas vagas, estava interessadíssimo na engenhoca .

* * *

O Concorde era pequeno, não muito espaçoso, de modo que os trâmites do embarque eram todos feitos em terra. Entrava-se para uma sala de espera, uma comissária conferia a passagem, pegava casacos e um ou outro pertence de mão mais incômodo. Lá havia jornais e revistas, canapés, bebidas e umas poltronas confortáveis, mas bem estreitinhas -— talvez para irmo-nos acostumando com os espaços do avião. Igual a qualquer outra sala VIP, exceto que, nela, todos já estavam teoricamente embarcados. No avião (que é como os leigos chamam as aeronaves), as poltronas eram como as de uma classe executiva, mas sem a tecnologia das poltronas mais modernas, que fazem até massagem nas costas do freguês.

Diferente mesmo era o “conjunto de obra”. A cabine, decorada por Andrée Putman, em tons de branco, contrastava com os uniformes coloridos das comissárias — disparado as comissárias mais chiques que já vi. A comida não só era extraordinária, como apresentada da forma mais requintada, numa louça simples e fina. Os talheres eram de prata, da Christofle. Só.

Lá na frente, na telinha em que os outros aviões mostram o mapa da viagem, o Concorde mostrava um marcador em números Mach. Mach 1 corresponde à velocidade do som, cerca de 1.224 Km/h. Não me lembro que velocidade o “meu” Concorde atingiu, mas tenho uma foto registrando 1.79 Mach. Tão rápido que, três horas e meia depois de decolarmos de Paris, aterrissávamos em Nova York. Prontos, graças à diferença de horário, para o segundo café da manhã no mesmo dia.

* * *

Se tenho tantos detalhes da viagem, isso se deve, em parte, a Mara Caballero -— para quem fiz, especialmente, várias das fotos de bordo. Gostávamos muito de chatear uma à outra com os momentos de sorte inesperada com que as viagens nos brindavam; adorávamos fazer de conta que este glamour emprestado era real, embora tivéssemos plena consciência de que, como jornalistas, estávamos apenas de passagem por mundos que não nos pertenciam de fato. Ou pertenciam, Mara?

Geralmente, ela ganhava o páreo, fácil. Afinal, o povo da moda sabe viver melhor do que o da tecnologia, e faz seus encontros em Londres, Roma e Tóquio, ao passo que os nerds vão, ano após ano, para Las Vegas, Atlanta e Orlando. O Concorde me deu uma pequena vantagem. Temporária: poucos meses depois, ela voltou de Paris triunfante, com mil e uma novidades a respeito do George V, onde ficara hospedada. Ah, se eu visse as fechaduras...! E aquelas gavetas dos armários, todas divididinhas?!

Entre as tantas qualidades que eu admirava nela, Mara tinha um olho infalível para o detalhe. Sabia temperar as observações mais graves com o humor peculiar que era sua marca registrada. E tinha uma elegância atrevida, sempre inteligente, e tanto mais chique por nunca se levar inteiramente a sério.

Vai demorar muito até que eu me convença que, desta vez, minha amiga querida, a minha referência maior nas delicadezas que tornam esta vida mais gentil, não volta mais.


(O Globo, Segundo Caderno, 30.10.2003)

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