Expresso de Xangai:
aventuras na China
Na quinta passada, enquanto esta coluna circulava por aqui, eu circulava por Xangai, enfrentando um frio danado, um trânsito ensandecido, a barreira da língua e alguns choques culturais de alta voltagem, dos quais não me recuperei de todo, ainda que parte deles fosse esperada. Em Hong Kong já me haviam dito, por exemplo, que os chineses, acreditando que certos fluidos não devem ser retidos no organismo, acham normal, e até saudável, cuspir na rua; só que, há dois anos, quando fui a Hong Kong, era primavera, e ninguém tinha muito o que escarrar. Já em Xangai, com o termômetro abaixo de zero, as calçadas estavam cheias de, digamos, “maus fluidos”. Para não falar em guimbas de cigarros, coisas quebradas, restos de comida e porcarias de toda a espécie. A imundície é geral e indescritível.
Por outro lado, sendo possível erguer os olhos do chão — o que nem sempre se recomenda, já que, estando constantemente em obras, Xangai tem algumas das ruas mais esburacadas do planeta — o que se vê é de tirar o fôlego: uma cidade em crescimento vertiginoso, cheia de edifícios extraordinários em que brilham luzes e cores, sem qualquer compromisso com este ou aquele estilo arquitetônico. Projetados em sua maioria por escritórios ocidentais, eles devem mais à estética futurista das histórias em quadrinhos do que aos velhos edifícios coloniais do Bund (pronuncia-se bú-ned ), o passeio às margens do Huangpu (um dos tributários do Yangtzé), que foi, até a vitória do comunismo em 1949, a avenida mais famosa da Ásia.
A impressão que se tem é que, livres da caretice dos conselhos municipais, da gritaria das ONGs e das restrições das associações de moradores, os arquitetos estão se esbaldando, fazendo em Xangai tudo o que não podem fazer em casa. Estão se divertindo como só podem se divertir em sistemas totalitários, sem questiúnculas irrelevantes como o povo ou o orçamento para atrapalhar seus delírios de concreto, vidro e aço. E, como às vezes acontece com este tipo de paradoxo, estão criando uma paisagem sensacional.
Em vários pontos da cidade, a demolição das construções antigas se dá ao mesmo tempo em que surgem os novos edifícios, obrigados durante algum tempo a dividir espaço com as últimas ruínas de velhos quarteirões proletários. Nelas, famílias inteiras continuam levando a vida de sempre, usando a calçada como extensão natural das casas pequenas demais para contê-las. O resultado é tão incongruente como se, em frente ao Rio Branco 1, houvesse meia dúzia de máquinas de lavar e fogões a lenha em funcionamento, cercados de varais de roupa. Mas que ninguém se iluda com este ridículo passageiro: Xangai, que começou a ser reconstruída para valer pelo governo chinês há meros dez anos, já é uma das cidades mais interessantes do mundo. Na semana passada havia um certo desapontamento no ar porque a Disney escolheu Hong Kong como local para seu próximo parque temático, mas o meu palpite é que Xangai, uma cidade que dispensa atrações artificiais, não está perdendo nada.
É claro que nem só de considerações sócio-arquitetônicas se faz uma visita à China. Entre outras dezenas de sustos e estranhezas, há os restaurantes, onde — graças a Deus! — não reconhecemos 90% da comida que nos é servida e, nos 10% restantes, reconhecemos apenas a pimenta; e há os mercados. Fui a um deles. Lá, a sujeira onipresente era realçada por uma camada de gosma derrapante e fedorenta no chão dos corredores estreitos, onde pedestres disputavam espaço com bicicletas e motos. Tudo muito pitoresco... até chegarmos à peixaria.
Eu tinha ficado um pouco para trás fotografando, quando ouvi o grito de uma amiga. Corri em tempo de ver, num balcão, um peixe grande que acabara de ser cortado em dois, ainda vivo, sangrando e se debatendo. Fiquei paralisada olhando para a cara daquele bicho que saltava sem a parte de baixo do corpo, e que levou uma eternidade para morrer.
Mas não havia sido essa a causa do grito da Luciana. Quando ela me encontrou, depois de ouvir o meu grito (claro, nem percebi, mas gritei também), o peixe já estava quase morto. O que ela vira havia sido igualmente horripilante: uma vendedora esmigalhando uma enguia também viva no chão, e depois cortando a sua cabeça fora com uma tesoura. Os chineses acharam o nosso pavor muito engraçado.
Todos os animais (sapos, cobras, enguias, peixes, caranguejos, tartarugas) são mantidos vivos em pequenas bacias, cuja água se renova com tubos de oxigênio iguais aos que se usam em aquários. As tartarugas, empilhadas umas em cima das outras, tentavam escapar, desesperadas. Logo adiante, uma moça limpava uma batelada de cobras. Cortava-lhes as cabeças, depois as abria ao comprido para tirar espinha e entranhas. Fazia isso de forma tão automática que nem as olhava mais.
Fugimos da peixaria, mas caímos num lugar pior: o aviário. Vi um cisne com as asas quebradas para trás, “amarradas” num tipo de nó, sendo pesado num gancho que o suspendia por este nó. Vi centenas de patos uns em cima dos outros, alguns com as patas partidas, todos com as asas quebradas dessa mesma forma, e nunca mais vou conseguir me esquecer do olhar dessas aves, eu que achava que aves não têm expressão. Nunca na vida vi um descaso tão generalizado com o sofrimento, uma tal banalização da crueldade. Pode-se argumentar que a forma como criamos os frangos nas nossas granjas não é mais “humana” (que palavra inapropriada!), ou que um matadouro não é muito diferente disso; não sei. No quesito comida chinesa, a única coisa que posso fazer é parafrasear aquele ex-notável da República:
— Mata, mas não estupra.
(O GLOBO, Segundo Caderno, 16.01.2003).
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