13.1.03



Celular versão top model

XANGAI, China -- Para que serve um telefone celular? Se você respondeu o que ainda parece óbvio, ou seja, falar, saiba que está — como eu estou, e estamos quase todos — na contramão da história. A resposta certa é, ou será em breve se tudo correr de acordo com os planos de fabricantes e operadoras, mandar torpedos, fazer barulho, se comunicar visualmente, dizer a que veio e a que tribo pertence, conferir o extrato do banco e o horóscopo do dia, saber das novidades, checar o email, matar os amigos de inveja.

E, às vezes, até falar.

A indústria não tem poupado esforços (nem recursos) para transformar este ideal em realidade. Uma após a outra, em reiterados congressos, showcases e encontros de todos os tipos, empresas, operadoras e associações tecno-ideológicas (CDMA, GSM, Edge, GPRS, Bluetooth, Symbian, UMTS...) vêm batendo na mesma tecla: o celular é a extensão ideal do ser humano, que só não veio de fábrica com um porque o Todo-Poderoso não conseguiu resolver imediatamente algumas questões básicas de protocolo.

— Os celulares não são mais vendidos por suas funções básicas — reconhece Jean Pierre Le Cannellier, diretor de estratégia e marketing da Motorola para a América Latina. — Eles deixaram de ser uma questão tecnológica, e passaram a ser produtos de consumo, muito diferenciados entre si.

A Motorola — que reuniu aqui em Xangai cerca de 800 pessoas, entre imprensa especializada, desenvolvedores de aplicativos e analistas de mercado para uma jornada de atualização, lançamento de produtos e apresentação de um novo sistema, o Moto Coder — não quer perder essa onda. Aos 75 anos de idade, uma eternidade no setor, ela se deu conta de que a faixa mais voraz da sua clientela nem tinha nascido quando, há exatos 20 anos, lançou no mercado o primeiro telefone móvel comercial.

Hoje, quem está correndo atrás dessa galera é um notável especialista em “público jovem”, Geoffrey Frost, que até 1999 era diretor de publicidade da Nike. Ele percebeu que não era com o bom e velho StarTac que seduziria a garotada, e deu uma sacudida geral nos setores de design e consumo da empresa. Os telefones que falavam em preto e cinza se transformaram em máquinas radicais prateadas, cheias de cores e sons interessantes, anunciadas na MTV, flagradas nas mãos dos personagens de “Friends” e fazendo figuração no Oscar.

O grito de guerra “Hello Moto” está em todas as paradas:

— “Moto” não deixa de ser uma volta às origens da companhia — diz Frost. — A empresa recebeu o nome de Motorola porque o primeiro produto que lançou foi o rádio para automóveis. Veja: “motor”, que é óbvio, e o final de “vitrola”, que era a máquina de som da época. A idéia de som, movimento e liberdade já estava implícita então.

“Moto” virou, sem trocadilho, o moto da Motorola. Que pode um dia, quem sabe, virar apenas “Moto”. Frost não descarta a possibilidade:

— Vamos ver como as coisas andam... — diz.

Se depender dos chineses, vão andar bem. A Motorola tem 30% do mercado de celulares local, ao qual pretende vender uns 70 milhões de aparelhos este ano. Não só este é um dos maiores mercados do mundo, como é um dos que mais crescem. Ele precisa ser cortejado, e isso explica por que viemos todos a Xangai, em vez de ir aos Estados Unidos, como seria de se esperar. Mais do que chamar a atenção do mundo para o que está acontecendo na China, a idéia foi, imagino, chamar a atenção da China para o que está acontecendo na Motorola.

Durante toda a semana, virtualmente todos os espaços publicitários do Pudong, o moderníssimo aeroporto internacional da cidade, diziam “Hello Moto”; outdoors em todas as ruas faziam eco, assim como banners em ônibus e táxis. Até as portas dos elevadores dos hotéis que hospedam os participantes do encontro viraram displays coloridos para os novos aparelhinhos.

Todos GSM, os oito se destacam, justamente, pelo que fazem além de falar: eles podem acessar a internet, têm sons de chamada que são verdadeiras trilhas sonoras, são inteiramente personalizáveis, da cor das cascas ao papel de parede e, nem preciso dizer, têm telas coloridíssimas. São muuuuuito cobiçáveis, e não é difícil imaginar zilhões de adolescentes chineses chateando os pais para comprar um modelo novo. Pensando bem, não é difícil nem imaginar alguns adultos brasileiros olhando para o cartão de crédito com segundas intenções. Pelo menos os três que vieram a Xangai teriam facilmente caído em tentação se eles funcionassem no Brasil.

Curiosamente, a parte tecnológica da festa foi realizada quase às escondidas. Entendo, porque, convenhamos, há poucas coisas menos glamourosas do que papo de nerd. A gente gosta, mas... hmmm... bom, quer dizer... bem, um pouco de autocrítica nunca fez mal a ninguém, fez? O fato é que a Motorola quis dar a todos, inclusive aos desenvolvedores, uma turma da pesada, o recado de que o lançamento de novos celulares é uma aventura fashion, digna de um megashow com produção caprichadíssima.

No Centro de Exposições de Xangai foi montada uma exibição histórica singular, reunindo todos os modelos da empresa, dos telefones de campanha da Segunda Guerra até o mini StarTac, passando pelos portáteis que os yuppies carregavam nos anos 80 com uma bateria a tiracolo. Tudo com muita ambientação, luzes, cenografia, antigos cartazes e material publicitário do paleozóico.

Os novos Motorolas, perdão, Motos, entraram em cena num desfile autêntico, nas mãos de modelos que poderiam ter saído diretamente de uma dessas semanas de moda de que a Mara Caballero tanto gosta. Taí, quem diria: a Motorola, que sempre foi o patinho feio dos celulares, levando ao extremo a tendência lançada pela Nokia, há quatro anos, quando o 8210 estreou numa passarela do Kenzo...

E, por falar em 8210: este é o Último Grande Desafio, o problema que gênio algum, da tecnologia ou do marketing, conseguiu resolver — o do nome dos celulares. Só aqui na China circulam, neste momento, 457 diferentes tipos de aparelhos; e, com tantos modelos novos saindo o tempo todo, esgotaram-se as palavras planetárias. De modo que estes lindos objetos de desejo, estes supra-sumos da alma cool do novo século estão, até segunda ordem, condenados aos números perpétuos.

Em outras palavras: condenados ao anonimato. Deve haver nisso uma ironia qualquer, mas às quatro da manhã de sexta-feira, 9 de janeiro de 2003, batucando no meu 560Z velhíssimo de guerra, no quarto 1001 do The Westin Shanghai, ela me escapa completamente.

(O GLOBO, Info etc., 13.01.2003)

P.S. Shangai aqui entrou com X, Xangai, porque esta é a grafia usada pelo jornal. Eu acho mais bonito com SH, como nos filmes antigos.

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