29.1.03



Adiós, Hilary

Na quinta-feira passada, Hilary Rosen, CEO da RIAA (Recording Industry Association of America, a poderosa associação das gravadoras americanas), anunciou que vai deixar o posto no segundo semestre do ano. Sinceramente? Já vai tarde. Nos cinco anos em que esteve à frente da RIAA, ela promoveu o maior estrago jamais visto pela indústria do disco. Não estou falando do ponto de vista do público, mas sim das gravadoras; pode até ser que um dia nós, usuários, com o benefício do distanciamento histórico, possamos agradecer-lhe o bem que nos fez. Na sua luta insensata contra qualquer avanço tecnológico, ela nos abriu as cortinas do passado — e o que estava (e ainda está) escondido lá é um horror.

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Ao trazer as gravadoras para a luz da ribalta com o famoso processo que matou o Napster, Hilary Rosen acordou o público. Todo mundo achava que os artistas mudam de gravadora porque uma lhes oferece mais dinheiro, ou o executivo da outra é mais simpático; subitamente, descobrimos que eles mudam porque, sugados até o bagaço, almejam um tratamento mais decente, e o pagamento justo do que lhes é devido em direitos autorais.

Graças a Hilary Rosen, vozes como as de Courtney Love e do nosso Lobão foram amplificadas, revelando um mar de lama de tais proporções que põe o Congresso Nacional e os fiscais do Garotinho no chinelo. A garotada também pôde ouvir os acordes dissonantes do Metallica, ensinando que às vezes uma aparência moderninha e contestadora esconde o pior pensamento reacionário; e nunca se discutiu tanto o indecoroso preço dos CDs.

Se não há atualmente um só consumidor sobre a face do planeta que não tenha plena consciência de estar sendo assaltado quando compra um CD não-pirata, isso deve-se, única e exclusivamente, aos esforços de Hilary Rosen e da associação que tão equivocadamente dirige.

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O assassinato do Napster é sentido, até hoje, como uma das maiores feridas abertas da internet. Não há quem tenha participado daquela extraordinária comunidade que não sinta saudades da adrenalina e das descobertas, do ritmo de crescimento do sistema e dos ritmos descobertos nas salas de chats, dos flertes musicais transoceânicos e dos encontros bizarros.

Como é que vou me esquecer, por exemplo, da madrugada em que estava baixando “Giovinezza” da máquina de um usuário que tinha uma preciosa coleção de hinos? No meio do download, abriu-se a janelinha de papo:

— Bella scelta! Dux nobis!

Tá, eu não sei bem qual é a vantagem de se encontrar um autêntico fascista na internet, mas, honra seja feita, de que outra forma eu poderia ter um encontro engraçado com um fascista?! Histórias pitorescas à parte, o Napster abriu mundos muito distantes para todos nós, mundos que, se dependessem das gravadoras, permaneceriam ocultos até o fim dos tempos.

Mas não somos nós, usuários, que devemos chorar pelo Napster. São as gravadoras. Sem a batalha cega da RIAA, nunca tantos teriam descoberto tanto em tão pouco tempo. Hoje a música rola na rede para quem quiser, livre, leve e solta como deve ser, espalhada em milhares de servidores inatingíveis. Nos tempos do Napster, eu só encontrei “Giovinezza” depois de meses de procura, naquele único servidor do fascista hi-tech. Agora, por curiosidade, dei uma busca no eMule — que nem é o melhor P2P para audio — e encontrei sete diferentes fontes.

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Sim, é verdade que na semana passada mesmo a RIAA conseguiu na justiça que a Verizon lhe entregasse o nome de um usuário que hospedava um belo ninho de músicas. Um. Repito: UM. Depois de quantos milhares de dólares em custos legais? Também é verdade que está indo atrás dos provedores de serviço, mais uma vez andando na contramão da História. A longo prazo, porém, essas são ações fúteis, que estão fazendo a festa dos advogados no mundo inteiro — e só.

O fato é que o usuário que quiser música grátis sempre vai encontrar música grátis, mas as gravadoras nunca mais vão encontrar uma ferramenta como o Napster: um único ponto da rede em que se reuniam todos os amantes de música, oferecendo uma oportunidade sem igual para quem quisesse estudar seus hábitos, preferências, sexo, faixa etária, estado civil, classe social...

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Em suma, com um mínimo de visão e de inteligência, a RIAA poderia ter usado esta formidável oportunidade para mapear musicalmente toda a humanidade conectada, a custo quase zero. Com isso poderia atender melhor à sua clientela — mas sabemos que esta é a última de suas preocupações. No entanto, poderia também ter feito espetaculares campanhas de marketing dirigido por uma fração do que gastou na justiça, ganhado baldes de dinheiro e saído da história com uma imagem limpa e amável. Que Hilary Rosen e seus asceclas não tenham visto isso é algo que, até hoje, escapa à minha compreensão.

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Diz Ms. Rosen que vai se aposentar para dedicar mais tempo à família.

Pobre família.

(O GLOBO, 27.01.2003)

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