9.12.10

Uma carta e um filme


  
Luis Ernesto Meireles, que leu a crônica da semana passada, deixou um depoimento comovente no blog. Não deixem de ler. O que ele diz é simples, bonito e verdadeiro:

“Sou um quase cinqüentão, nasci e cresci no subúrbio (no lado pobre do Méier) e conheci um monte de gente que foi para o tráfico por falta de qualquer outra perspectiva que fosse viável ou digna. Nós éramos um grupo de garotos muito alegres, que brincava na rua de bola, rolimã, pipa (o videogame da nossa geração), mas a nossa "janela de futuro" era, na maioria das vezes, ou curta demais ou degradada. Quando jovem, fui algumas vezes no Morro do Cruzeiro, na casa de um amigo que trabalhava com meu pai, buscar ou pegar alguns documentos ou dar algum recado. Eu chegava e saía sem nenhum problema e, mesmo o tráfico já estando presente (sempre esteve), o que eu via eram senhoras, crianças, homens, velhos, novos, circulando à noite pelas vielas que tinham as portas das casas abertas e onde todos conheciam a todos e davam suporte uns aos outros nas muitas enormes dificuldades. Mas, como você disse de forma certeira: os nossos "contratados" (pelo voto), a quem pagamos salários (com os quais não concordamos), nos abandonaram.

Hoje, depois de alguns golpes da sorte, que me trouxe oportunidades que eu não suspeitava, consigo pagar minhas contas e morar “do lado de cá” da cidade. Mas faço questão de continuar a conhecer a cidade inteira e de não me deixar amedrontar em demasia. Recentemente, tentando me aproximar de uma iniciativa da qual gosto muito, fui conhecer por dentro a favela de Vigário Geral. Almocei na casa da Chupetinha ao lado de jovens homens (armados com pistolas e fuzis) que eram todos, todos mesmo, a "cara" dos meus amigos de adolescência e juventude. Eu poderia, sem muita dificuldade, ser um deles. Eu tive muitos colegas de rua que viraram um deles. Aquele era o trabalho deles e as conversas, sobre futebol (com as "zoações" que não podem faltar nas divergências entre torcidas), sobre mulheres, sobre discordâncias em relação às preferências musicais de cada um, sobre bobagens e trivialidades, todas elas eram conversas que poderiam ser travadas no Braseiro, na Gávea. Poderiam, por serem eles, naquele momento, não os facínoras que matam e seqüestram, mas os caras com quem eu dividia o litrão de refrigerante. 

Sei que o que fez a enorme diferença para que eu não fosse um deles foi o fato de que a minha mãe, mesmo sendo pobre e tendo que ralar muito (vendendo bijuterias em banheiros de repartições públicas), nunca abriu mão de que estudássemos em boas escolas. Podíamos não ter nada, e às vezes não tínhamos sequer o que almoçar direito, mas não nos faltavam o uniforme, os livros, os cadernos e alguns lápis. Eram todas escolas municipais ou estaduais (escola particular, nem pensar, mesmo que muito de longe). Eram as últimas que ainda "prestavam", o que fazia com que nos deslocássemos todos os dias de ônibus para poder estudar, mesmo longe de casa. 

Tobias Monteiro e Thomas Mann, no Cachambi, José Veríssimo, no Rocha, deixaram marcas indeléveis no cidadão que me tornei.”

* * *

Um dia, Alfie (Anthony Hopkins), na flor dos seus setenta anos, chega à conclusão de que a mulher Helena se deixou envelhecer, e sai de casa em busca da eterna juventude. Ganha uma ação ao portador do Banco Panamericano quem adivinhar que Alfie estará perdido, sentimental e financeiramente, ao encontrar uma garota de programa jeitosa. Woody Allen já criou ótimas garotas de programa, mas Charmaine (Lucy Punch) não está entre elas. É um clichê ambulante, o que talvez explique o desempenho medíocre de Hopkins: como contracenar com uma caricatura?

Helena (Gemma Jones, na melhor atuação do filme) vai buscar consolo com uma vidente que lhe diz as coisas que quer ouvir – e que ela corre a repetir para a filha e o genro, para desespero de ambos. Esse é outro casal que não vai bem. Roy (Josh Brolin) está em crise: escreveu um bom livro mas nunca mais conseguiu acertar a mão. Sally (Naomi Watts) se interessa pelo chefe (Antonio Banderas) e se angustia com a inércia do marido que, enquanto isso, observa pela janela a vizinha maravilhosa (Freida Pinto).

Encontros e desencontros de casais neuróticos e seres humanos fazendo besteiras variadas são temas recorrentes de Woody Allen; surpresa nenhuma aí. Surpreendente é que os personagens deste filme sejam tão unidimensionais e mal-ajambrados; não há como desenvolver um mínimo de empatia por qualquer deles. O caso mais sério é o de Josh Brolin, tão deslocado no seu papel quanto Kenneth Branagh em “Celebridades”.

Como em “Dirigindo no escuro”, em que construiu um filme inteiro a partir de uma piada, Woody Allen constrói tudo, aqui, a partir de um conto moral, de uma falha ética monstruosa; mas “Dirigindo no escuro” tinha Woody Allen no elenco e meia dúzia de situações engraçadas. “Você vai encontrar o homem dos seus sonhos” tem muito pouco, além da conclusão de que só os idiotas completos são felizes.

Este é, talvez, o pior Woody Allen que já vi (não foi por acaso que citei “Dirigindo no escuro” e “Celebridades”). Ainda assim, há diálogos inteligentes e assiste-se a tudo com um vago interesse, imaginando aonde aquilo vai dar. É triste perceber, depois de 98 longos minutos, que não dá em nada; mas mais triste é constatar que mesmo o pior Woody Allen ainda é melhor do que 90% dos filmes que têm chegado às telas.   


(O Globo, Segundo Caderno, 9.12.2010) 

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