16.12.10

Livros para o Natal


  
“Jeff em Veneza, morte em Varanasi”, de Geoff Dyer (Intrínseca, tradução de José Rubens Siqueira), me atraiu pela brincadeira literária do título, e por mostrar duas das minhas cidades favoritas espelhadas. Hoje, passados alguns meses da leitura, continua a me assombrar: num ano de ótimos livros, acabou sendo o meu favorito, e é o que primeiro me vem à cabeça para recomendar  como presente para gregos, troianos, venezianos, benarasis e seres humanos letrados de modo geral.

O livro é um, mas suas metades compõem na verdade um díptico. O personagem da primeira chama-se Jeff Atman. Ātman, como nos explica a Wikipedia, é uma palavra em sânscrito usada para identificar a alma, seja no sentido global, seja no individual. É, em suma, a essência do ser.

(Indo um pouco além, descobrimos que o termo ātman está ligado à raiz indo-europeia ēt-men, que significa respirar, e ao grego asthma, resfolegar, que dá origem à nossa familiar asma: etimologia é mesmo uma felicidade.)

O Jeff que Dyer nos apresenta é, pois, tão íntimo e essencial que não há como deixar de pensar nele como alter ego de Geoff.  Na primeira parte, é um freelancer de meia-idade que não suporta mais escrever, mas acaba indo à Bienal de Veneza para uma revista estilosa. Lá, cai na roda-viva de sexo, drogas e narcisismo promovida pelo circo da arte contemporânea; nas notas e agradecimentos, o autor, prudentemente, observa que as opiniões sobre arte de Jeff não são necessariamente as de Geoff. Nessa Veneza de bocas-livres, a vida brilha em refrações artificiais, numa realidade emprestada e transitória, iates, festas e taças memoráveis.

O personagem da segunda parte, que fala em primeira pessoa, vai a Varanasi para uma reportagem de turismo. Passa os cinco dias combinados num hotel de luxo, ao fim dos quais resolve esticar a viagem. Muda-se então para uma pensão às margens do Ganges e, aos poucos, é engolido pela cidade onde, de certa forma, e ao contrário de Veneza, menos é mais. Há ressonâncias e coincidências entre as duas partes do livro, sonhos aqui que se tornam realidade ali, ou vice-versa, mas sequer temos certeza de estarmos diante do mesmo protagonista. É quase inevitável voltar à primeira metade depois da leitura da segunda.

“Jeff em Veneza, morte em Varanasi” é leve e irônico na forma, denso e às vezes angustiante no conteúdo. O estilo de Dyer, elegantemente despretensioso, nos leva a regiões obscuras sem aviso prévio, nos diverte quando menos esperamos e nos pega até o fim.

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De acordo com tudo o que a ciência sabe a respeito dos oceanos e do seu comportamento, ondas gigantes em mar aberto, em tese, não existem. São aberrações sem explicação física – e, o que é pior, sem testemunhas, dado que a maioria das pessoas para quem apareceram não sobreviveu para contar a história, e às sobreviventes nunca se deu muito crédito. Ou, melhor dizendo -- não se dava. Há meros dez anos, no entanto, em 8 de fevereiro de 2000, um navio científico apropriadamente chamado Discovery topou com uma dessas aberrações, e não só escapou  como, ainda por cima, registrou a altura média das ondas em seus instrumentos: 18,6 metros. De acordo com a meteorologia e demais oráculos contemporâneos, ondas daquele tamanho não podiam acontecer naquele mar, naquele dia. E, no entanto, aconteceram.

A pergunta básica, portanto, mudou. Antigamente os cientistas queriam saber se essas ondas existiam; hoje querem saber por que existem. Faz sentido, e pode fazer diferença. A cada semana, em média, dois navios grandes afundam nos mares do mundo, e até agora a única explicação tem sido “mau tempo”.

É atrás dessas ondas aberrantes que Susan Casey mergulha em “A onda” (Zahar, tradução de Ivo Korytowski). Ela conversa com as pessoas que mais entendem do assunto: cientistas de diferentes áreas ligadas ao oceano, marinheiros e surfistas de tow-in, a começar por Laird Hamilton, lenda viva do esporte.

Este é o livro perfeito para quem gosta do mar, com a vantagem de poder ser lido confortavelmente no alto de uma montanha, bem longe da água. Em qualquer circunstância, porém, causa arrepios genuínos e nos faz pensar em muitas coisas interessantes.

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Certos clichês são inevitáveis; no caso da cidade erguida por Henry Ford na Amazônia, a realidade de fato supera a ficção. Se Greg Grandin tivesse tirado “Fordlândia” (Rocco, tradução de Nivaldo Montingelli Jr.) do nada, seria acusado de tal série de incongruências e exageros que seu livro viraria objeto de ridículo. Como, ao contrário, ele foi buscar os fatos, acabou por criar uma obra assombrosa, que se lê com avidez e espanto.

Imaginem o cenário: uma perfeita cidade americana, dividida em quarteirões regulares, com campo de golfe, pavimento, calçadas e hidrantes vermelhos, plantada às margens do rio Tapajós. O mais inusitado é que, por trás do empreendimento capitalista (a plantação de seringueiras), havia uma corrente moralizante, ditada pelo próprio Ford -- que, entre outras esquisitices, obrigava as crianças da cidade a beber leite de soja, porque não gostava de vacas.

“Fordlândia” é um épico amazônico clássico, com todos os ingredientes que conhecemos: homens arrogantes e despreparados, apanhando da natureza das plantas, dos bichos e das gentes.

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Tenho outros livros ótimos a recomendar, mas acabei me deixando levar pelo entusiasmo por esses três, e o espaço acabou. A crônica da semana que vem sai dia 23. Sei que fica um pouco em cima, mas vou trazer outras sugestões. Afinal, todo mundo sempre deixa tudo para a última hora, é ou não é?

(O Globo, 16.12.2010) 

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