30.12.10

Retalhos de fim de ano


  
Nosso sítio de Friburgo, o “Pois é”, foi projetado por Mamãe, que é arquiteta, com o máximo de carinho e de atenção aos detalhes. Os anos 60 mal começavam e ecologia era só uma palavra no dicionário, mas junto com a casa foi construída uma composteira para a reciclagem do lixo, e Mamãe virou mundos e fundos atrás de uma novidade chamada aquecimento solar, que só se materializou uns tempos depois.

Esse cuidado se fez presente em tudo, da divisão do espaço às maçanetas das portas, do pé direito à posição e quantidade das tomadas. Só na sala, por exemplo, havia quatro, estrategicamente espaçadas para que nunca faltasse um ponto de energia para a enceradeira ou para uma eventual furadeira elétrica. Televisão não tínhamos nem nos fazia falta.   

O que Mamãe não poderia prever é que, no Natal de 2010, além de enceradeira e furadeira, a casa abrigaria notebooks, tablets e celulares, além do telefone sem fio e da televisão que, afinal, acabou achando um nicho na estante, acompanhada de um player de DVD e do decoder da parabólica. Resultado: hoje todas as tomadas têm benjamins, onde os vários aparelhos da família disputam lugar.

O mundo nunca deu tantas voltas tão rápido.

* * *

Certo tipo de ativismo político é um luxo a que só se pode dar quem tem um mínimo de organização. Não é o meu caso. No ano de 2008 decidi boicotar o IPTU. Estava indignada com o Cesar Maia e não queria ajudar a bancar sua campanha política. Até aí, tudo bem. Muita gente fez o mesmo – mas, sensatamente, não perdeu o carnê de vista e, quando o Cesar Maia foi enfim varrido da cena carioca, pôs a vida em dia.

Aqui em casa, porém, o carnê sumiu numa gaveta... e nunca mais pensei no assunto. A prefeitura, que podia ter tido a gentileza de me lembrar a dívida, não o fez – até a semana passada, quando me chegou às mãos um papel oficial com números horrendos, já em dívida ativa. Caía um temporal daqueles. Corri para a rua e peguei o primeiro taxi que passava. Dei o endereço recomendado no papel, no 58 da Rua Sete de Setembro. 
A repartição fechava às 16h; passava um pouco das 15h, mas com aquela chuva e aquele transito...

O motorista e eu engatamos um papo sobre as misérias do fim de ano.

Quando saímos do Rebouças eram 15h45.

-- Ai ai ai, não vai dar tempo...

-- A senhora me desculpe, mas o que é que a senhora vai fazer lá?

-- Tenho que pagar um caminhão de dinheiro na dívida ativa.

-- Ah, mas então a gente não precisa ir até lá. Vamos aqui na prefeitura mesmo! Eu tive que resolver uma parada dessas na semana passada, sei direitinho onde é.

Assim que descemos o viaduto o motorista cortou por uma rua que eu não conhecia, virou numa outra que eu sequer imaginava que existisse e, finalmente, parou atrás da prefeitura.

-- Está vendo aquela porta ali, onde tem um rapaz falando no telefone? Então, entra lá, é a terceira seção, à esquerda. Se a senhora correr dá tempo.

Eram 15h57. Nem abri o guarda-chuva, para não atrasar. Quando cheguei ao guichê, às 15h59, um funcionário estava em vias de fechar a área com uma correntinha.

-- Ô moço, quebra o meu galho... ainda falta um minuto!

-- Tá bom, mas é a última senha do dia.

O senhor que vinha atrás de mim, coitado, chegou às 16h01 e teve que voltar para casa.

* * *

Mamãe, que é a organização em pessoa, quase teve um piripaque quando soube dessa história.

-- Mas minha filha, você devia ter depositado em juízo!

-- Eu sei, eu sei. Não precisa dar bronca. Eu conheço a teoria toda, só me enrolo na prática.

-- Agora, pelo amor de Deus, não sai contando isso para as pessoas, porque nem pega bem. Como é que alguém me faz uma besteira dessas?!

Portanto, estamos combinados: essa história fica só entre nós.

* * *

Como nem o Eike Batista consegue pagar um IPTU atrasado com o tanto de juros, multas e moras que lhe cai em cima, parcelei a dívida em 19 prestações. Em qualquer lugar civilizado do mundo, o contribuinte pode deixar um pagamento desse tipo por conta do banco, em débito automático. Não, porém, no Rio de Janeiro, onde, além de ser punida pelo passado, a criatura em atraso sofre ao longo do futuro: todo santo mês, pelo próximo ano e meio, terei que entrar no site da prefeitura, buscar o link apropriado, imprimir uma guia e ir ao banco. Faz sentido isso, a dois dias do ano de 2011?!  

* * *

Pensei em fazer uma lista dos melhores filmes que vi no cinema em 2010, mas 2010 não foi, pelo menos do meu ponto de vista, um ano de filmes memoráveis. Destaco, então, “Toy Story 3”, um filmaço sob todos os aspectos. Aliás, considero a série “Toy Story” uma das melhores trilogias cinematográficas de todos os tempos, se não a melhor.

Em tempo: esclareço que não assisti ainda a “Tropa de elite 2”, grande campeão de público e crítica.

* * *

Uma das felicidades de 2010 foi o encontro marcado aos domingos, aqui mesmo no Globo, na Revista, com os cartuns sempre divertidos e certeiros do Bruno Drumond, o melhor observador da classe média carioca. O seu desenho é elegante e divertido, e ele não erra uma.

* * *

Que, apesar de todos os pesares, 2011 seja, para todos nós, um ano bom e generoso, carregado de felicidade.  

(O Globo, Segundo Caderno, 30.12.2010)

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