4.11.10

Recadastramento, o drama




















Era uma vez uma velhinha que, como a maioria dos velhinhos, vivia da aposentadoria. Um dia, consultando um caixa eletrônico, viu que a sua conta estava zerada e que a pensão não havia sido depositada. Ficou muito preocupada, com medo de que o cartão bancário houvesse sido clonado, e lá se foi para o banco, conferir o que tinha acontecido. A moça do caixa checou daqui e dali e, afinal, descobriu que o dinheiro não fora depositado porque a velhinha não havia se recadastrado. Para voltar a receber a pensão, explicou a moça, devia ir a certa repartição pública. A velhinha prontamente se dirigiu para lá; mas lá não era lá. Depois de muita busca e demora, apareceu afinal alguém que sabia das coisas, e mandou-a para outro endereço. Era lá.

-- Como é que vocês fazem um recadastramento sem avisar a ninguém? – protestou a velhinha.

-- Mas nós avisamos – respondeu o funcionário. – Divulgamos em todas as rádios da região, e no jornal “A Voz da Serra”.

A velhinha, que não gosta de ouvir rádio nem lê “A Voz da Serra”, argumentou que tinha endereço certo e sabido, e que em relação a assuntos tão importantes o mínimo que o estado podia fazer era enviar correspondência. O funcionário concordou, mas tranquilizou-a, dizendo que, dentro de uma semana, ela receberia um cartão magnético que resolveria todos os seus problemas futuros. A pensão voltou a ser depositada; o cartão, porém, nunca chegou. Em compensação, algum tempo depois, chegou uma carta da Seplag, Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, Rioprevidência, convocando-a para novo recadastramento – a ser realizado no dia anterior à chegada da carta, às 14h20.

A velhinha correu aflitíssima para o endereço indicado na carta. O local – uma escola estadual – estava vazio.

-- Eles não estão mais aqui – informaram. – O jeito é a senhora ir à Seplag.

A velhinha foi para a Seplag, onde foi recebida por uma funcionária atenciosa que, infelizmente, não pode fazer nada.

-- O problema é que agora são eles que fazem o recadastramento -- disse a moça.

-- Mas quem são “eles”? – perguntou a velhinha.

-- É que não é mais conosco, foi tudo terceirizado.

-- Não entendo porque a secretaria insiste tanto nesse recadastramento! -- desabafou a velhinha. – Na Europa, quando alguém morre, o cartório manda cópia da certidão de óbito para todas as fontes de aposentadoria, automaticamente.

-- Aqui também.

-- E aí? Não basta isso para que uma secretaria de planejamento e gestão possa separar vivos de mortos? Tem que assustar e atrapalhar os aposentados o tempo todo?

-- Ah, mas a senhora sabe como são essas coisas, né? – disse a funcionária.

Sim, a velhinha sabia. Um recadastramento terceirizado era coisa que devia dar muito dinheiro a várias pessoas. De qualquer forma, restava o problema: o que fazer? A moça orientou a velhinha a telefonar para um número da Seplag, o que a velhinha fez assim que chegou em casa. Neste número disseram a ela para ligar para outro número; e neste outro número, enfim, disseram-lhe para entrar no site, porque hoje em dia tudo é muito moderno e se resolve pela internet.

A velhinha ficou desesperada. Em seus 86 anos de vida, nunca precisou de computador, nunca pensou em ter computador e nunca teve a menor idéia de como entrar num site. Pegou um ônibus e desceu a serra, para pedir ajuda à filha. Mesmo assim, a tarefa não foi simples, porque o site é mal feito e complicado de navegar.
Depois de muitos cliques que não levaram a lugar nenhum, a filha conseguiu chegar à página que interessava. Entrou os dados pedidos e recebeu de volta um email:

“Acusamos o recebimento de sua justificativa de ausência. Fique atento à sua nova convocacão, que será divulgada através do site www.idfuncional.rj.gov.br, ou pelo número 0800 282 2326 no caso de segurados do Rioprevidência. Nos casos de segurados com impossibilidade de locomocão, o Rioprevidência fará o agendamento de sua identificacão biométrica no momento oportuno. Esta é uma resposta automática e não deve ser respondida.”

E este foi o ponto final das comunicações entre a velhinha e a sua fonte pagadora. Nem ela nem a sua filha entendem por que, tendo o endereço de email, a Seplag não avisa a data do agendamento aos interessados. O resultado é que, agora, estão ambas aflitas, uma discando o 0800 e a outra acessando o site, para não perder a data e a aposentadoria. Com o correio, já sabem que não podem contar, porque as cartas só chegam depois da data marcada. As duas me perguntaram se é isso que o estado considera boa gestão, e quantos aposentados não estarão na mesma angustiante situação.

-- Você já viu alguma empresa particular precisar recadastrar funcionário para saber quem existe e quem não existe? – me perguntou a velhinha. – Será que a Ambev ou a IBM recadastram seus funcionários o tempo todo? Você alguma vez já foi recadastrada?

-- Não, pensando bem, nunca fui. Sabe o que? Eu acho que isso dá uma crônica.

* * *

Enquanto isso, dois amigos tiveram os títulos de eleitor cancelados e não puderam votar nessas eleições, porque estão registrados em Mangaratiba, onde têm sítio. Descobriram isso no primeiro turno, quando chegaram à zona eleitoral e deram com os burros n’água. É que em Mangaratiba e em outros sete municípios fluminenses os eleitores precisaram se recadastrar.

-- Mas como é que vocês não avisaram isso às pessoas?! – perguntaram, indignados.

-- Avisamos sim: o carro de som rodou a cidade inteira.


(O Globo, Segundo Caderno, 4.11.2010) 

Nenhum comentário: