25.11.10

Minha bronca com a evolução



Há alguns milhares de anos, quando o homem e a mulher – estes, que nós somos – apareceram na face do planeta, a comida era um combustível necessário, mas desprovido de graça e, sobretudo, difícil de obter. Catar vegetais era relativamente fácil, desde que existissem vegetais comestíveis na área; e suponho que o fato de terem sido vistos primeiro por pássaros e por pragas variadas não era problema. Até outro dia, mas outro dia mesmo, encontrar bicho na goiaba era o que havia de comum, e não causava nojo em ninguém, exceto quando, sem querer, mordia-se o bicho.

Carne, para aqueles bípedes ancestrais, era caso mais complicado. Imagino que, antes da invenção da caça, nossos primeiros antepassados serviam-se, como as hienas, das sobras da caça alheia, muitas vezes bem além do prazo de validade. O que havia era comido cru, porque carne não nasce assada e até alguém associar o fogo ao filé passaram-se muitos e muitos e muitos anos.

As pessoas de uma mesma tribo dividiam a comida e jantavam juntas, como fazem em geral os animais gregários. Não é difícil imaginar um clima de festa, porque comida não era coisa que sobrasse; além disso, clima de festa em torno de comida é o que mais se vê nos filmes de vida selvagem da Nat Geo. Prazer em comer, porém, exceto pelo ato básico -- e vital -- de matar a fome, devia ser inexistente. Garfinhos do Rio Show, nem pensar.

Pois este animal que se alimentava tão mal (e, dependendo da localização geográfica, com tão pouca freqüência), era o projeto original da fábrica: um corpo acostumado a se mover o tempo todo em busca de alimento, mas, paradoxalmente, movido a um mínimo de energia.

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Um dia, alguém deixou cair um pedaço de carne no fogo, ou um incêndio florestal deixou umas carcaças tostadas; e o homem viu que o churrasco era bom. Em outros cantos, ou talvez nos mesmos, outros bípedes comiam moluscos ou peixes e descobriam o sabor do sal, que ganhou tal importância com o passar dos milênios que está na origem da palavra salário.

(Reza a lenda que os antigos soldados romanos recebiam seu pagamento em sal; não é verdade. Como o sal era uma das principais despesas de então, salarium era simplesmente o dinheiro com o qual, entre outras coisas, os soldados compravam sal. Mal comparando, é como chamar de “ganha-pão” ao emprego que nos sustenta.)

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Pois bem. Descobertos o fogo e o sal, estava dado um passo gigantesco na modificação das especificações com que a humanidade saiu da forma. O sal não é apenas um dos primeiros temperos conhecidos, é também um dos primeiros conservantes, e a possibilidade de salgar a carne e os peixes garantia um estoque maior e mais constante de comida. Mais para a frente, alguém descobriu que as sementes germinavam e que era possível reproduzir certos vegetais, inventando a agricultura, uma nova fonte de alimento e, de quebra, todo um estilo de vida. Logo os primeiros quadrúpedes eram domesticados, e lá ficava a carne, ruminando pelos pastos. Daí para o  bœuf bourguignon foi um passo.

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E por que estou falando disso? Porque, tendo nos dado o engenho e a arte de inventar algo tão sofisticado quanto a culinária, a natureza nos manteve com o mesmo organismo daqueles bípedes que caçavam javali a tapa. Ora, é lógico que essa combinação não podia dar certo! Por um lado, inventamos os meios de transporte e temos os temperos e as receitas que tornam o nosso combustível uma irresistível fonte de prazer; por outro, conservamos um corpo que continua a pedir movimento contínuo, e que não consegue (ainda!) processar o excesso de calorias. Está tudo errado.

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Quem já fez dieta e emagreceu sabe que, saindo um tiquinho que seja da linha, os quilos voltam a uma velocidade alarmante. A mim explicaram que isso é porque o organismo está condicionado, desde a Era Glacial, a se precaver contra futuras faltas de alimento (que é o que ocorre durante a dieta). Mas, caramba, a Era Glacial foi há 20 mil anos! Será que ao longo de todo esse tempo a natureza não podia ter percebido que uma certa espécie deu de evoluir de forma esquisita?

Sim, vocês adivinharam: continuo de regime, continuo sofrendo as conseqüências desastrosas das lembranças da Era Glacial guardadas pelo meu organismo e cada vez fico mais convencida de que, se a evolução fosse mesmo algo evoluído,  a Kate Moss seria regra, e não exceção.

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Há uma nova capivara na Lagoa!

Há cerca de dois meses, um leitor escreveu contando que a viu de manhã cedinho, ali para os lados do Caiçaras. Fui lá algumas vezes ao cair da tarde, horário muito apreciado pelas capivaras, procurei bem e nada. Sei que elas se escondem muito bem mas, apesar disso, cheguei a achar que o leitor tinha visto algum outro bicho qualquer, quem sabe um cachorro grande. Há duas semanas, outro leitor mandou um email semelhante: capivara avistada perto do Vasco.   

Na semana passada, enfim, ela apareceu no Cantagalo, perto do Palaphita, e foi vista por várias pessoas. É grande e bonita, muito arisca, e está com um pequeno ferimento nas costas, nada de muito sério. Como acontece com as capivaras que vêm para a Lagoa, ninguém tem idéia de onde possa ter surgido.

Que seja bem-vinda.


(O Globo, Segundo Caderno, 25.11.2010)

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