A casa de qualquer amante de gadgets que tenha um mínimo de recursos para dar asas à sua paixão acaba, com o tempo, se transformando numa espécie de cemitério de antigas tecnologias. A minha casa não é exceção. Há velhos PDAs e celulares de diversos tipos e idades pelas gavetas, dispositivos de armazenagem de vários tamanhos e capacidades pelos armários e um baú inteiro de placas, conversores e cabos paralelos e seriais que não tenho coragem de jogar fora porque, afinal, nunca se sabe quando podem tornar a ser úteis.
Há também, num cantinho esquecido do escritório, um objeto meio retangular, do tamanho de um livro, com quatro centímetros de largura e um lado arredondado, que atende pelo nome de Rocket eBook. Foi lançado em 1999 e chegou a ser muito popular no seu tempo como leitor de livros eletrônicos. Era um prodígio, podia armazenar bem uns dez romances, e eu fiquei empolgada com essa possibilidade – mas, na vida real, não consegui sequer chegar à metade de um dos livros que armazenei nele. A tela ruim me cansou, e o peso de quase 700 gramas também não ajudou a consolidar nossa relação. Não tive coragem de jogá-lo fora, achando que um dia, quem sabe, ele me poderia ser útil numa viagem. Os anos foram passando, continuei viajando com dois ou três livros na mala e o Rocket eBook continuou encostado.
O seu fantasma, porém, me assombrou por muito tempo. Tanto que, quando a Amazon lançou o Kindle, não tive coragem de ir atrás. “Vai ser mais um gadget morto numa gaveta”, pensei com os meus pendrives. E assim é que fiquei olhando o movimento dos ebooks de longe, às vezes com um pouco de cobiça, mas de modo geral muito tranqüila na minha relação com os velhos livros de papel.
Há um mês, porém, uma amiga que não se entendeu com o Kindle me emprestou o brinquedo. É um Kindle da segunda geração, portanto já ultrapassado pelo espertíssimo Kindle da última geração, que não só é mais leve e tem tela com melhor contraste, como vem, de fábrica, com 3G gratuito no mundo todo, inclusive Brasil – uma perdição para quem acredita em gratificação instantânea.
Esta foi, aliás, a primeira sensação que experimentei com ele. Alguém me recomendou um livro, e em vez de encomendar o exemplar em papel, como teria feito normalmente, baixei a versão eletrônica. Ao contrário do que eu esperava, o preço foi um dólar mais caro do que o da edição tradicional (que estava com desconto), mas o que economizei no transporte foi ótimo e, maravilha das maravilhas, em alguns minutos eu já estava mergulhada na leitura.
Porém... sim, a minha experiência com o Kindle tem um porém, um grande porém – ele não é um livro, séria falha para quem, como eu, tanto ama o objeto em papel. Kindle e livros não se comparam sensorialmente. Quem pega um livro em papel sabe, imediatamente, quanta leitura tem pela frente. Embora o Kindle mostre numa barrinha a percentagem de páginas lidas, não é a mesma coisa. O Kindle perde também num quesito básico para o leitor contumaz: a folheada que se dá antes da leitura, em que se pescam frases aqui e ali, numa espécie de trailer do livro.
Se eu tivesse comprado um Kindle, ele não seria mais um gadget no cemitério; eu o usaria para ler artigos encontrados na internet (nisso ele é excelente) e, eventualmente para baixar livros que não tivesse paciência para esperar pelo correio. Talvez também o levasse em viagens, em vez dos volumes que habitualmente carrego. De qualquer forma, depois de um mês de convivência, já sei que, para mim, ele é apenas o complemento da biblioteca, uma forma a mais de buscar livros -- mas não a fonte primária de toda a leitura.
(O Globo, Economia, 13.11.2010)
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