Vocês já foram assistir a “Tempos de paz”? Pois se não foram, não sabem o que estão perdendo. Filmado em menos de dez dias com um orçamento relativamente modesto, é um trabalho amoroso e da melhor qualidade, em que brilham os competentíssimos Tony Ramos e Dan Stulbach. E em que, assim como quem não quer nada, revela-se, ao fim, uma comovente homenagem ao teatro e a tantos imigrantes que, vindos de uma Europa destruída pela guerra, tornaram-se orgulhos do Brasil.
A história da produção começa com “Novas diretrizes em tempos de paz”, de Bosco Brasil -- praticamente uma peça de bolso, com apenas dois atores em cena e o mínimo de cenário. Como acontece quando um grande texto encontra atores à sua altura, o espetáculo era empolgante e foi um sucesso estrondoso. Daí surgiu a idéia de levá-lo às telas. Por mais que uma peça fique em cartaz, é sempre um momento passageiro, desfrutado por quem teve a sorte de vivê-lo; depois acaba e, na melhor das hipóteses, vira lenda. Mas por que não registrar esse momento, e ampliá-lo no tempo e no espaço?
Fiquei muito curiosa quando soube que o filme estava sendo feito. Tenho uma relação especial com a peça -- parte das definições do som da nossa língua aos ouvidos de um estrangeiro saiu de “Como aprendi o português e outras aventuras”, livro de meu Pai -- e queria ver como aquela história intimista, feita sob medida para teatros pequenos, poderia ser transcrita para o cinema. O enredo é simples: o imigrante Clausewitz chega ao Brasil. Desperta suspeitas porque fala português, e é interrogado por Segismundo, agente da lei. O mundo do polonês, um ator idealista, desmoronou há tempos. O do brasileiro, brutamontes que sempre cumpriu ordens, está desmoronando: não há lugar para torturadores nos novos tempos. Clausewitz precisa de um visto de permanência; Segismundo quer mandá-lo de volta para o navio, que seguirá para as Malvinas. Cabe ao estrangeiro convencê-lo de que não representa perigo para a nação.
No filme, a salinha fechada em que transcorre a ação da peça abre-se para um cenário maior, e nossa primeira visão de Clausewitz, que no teatro acontecia numa réstia de luz, se dá a bordo do navio que o traz, cheio de esperanças e ilusões. Segismundo, ao contrário, está desiludido e desnorteado. É abril de 1945, os comunistas foram anistiados e a barra pesou: ele tem que dar um jeito de sumir antes que alguém suma com ele. No armazém do cais onde acontece o interrogatório, os personagens principais circulam entre um depósito cheio dos objetos incongruentes da alfândega, um arquivo onde se amontoam processos e áreas comuns. Outros personagens, que no teatro existiam apenas nas referências de Segismundo, como sua irmã e o médico que a salvou, ganham vida própria e vão e vêm em cenas rápidas, abrindo algumas externas que nos tiram do ambiente opressivo do cais.
São mudanças pequenas mas significativas, que acrescentam à dinâmica do filme sem diminuir a tensão do confronto. Elas foram, a meu ver, decisões muito acertadas de Bosco Brasil, que escreveu o roteiro, e do diretor Daniel Filho. Tony Ramos repete, à perfeição, a sua poderosa performance do palco. Dan Stulbach muda um pouco o caráter do seu Clausewitz, dando-lhe certa ingenuidade de farsa nas primeiras cenas. A trilha sonora de Egberto Gismonti é linda, linda.
O que é que vocês estão esperando? Corram para o cinema! Quem assistiu a “Novas diretrizes em tempos de paz” vai viver a curiosa experiência de ver a mesma história contada em outro meio; quem não assistiu, vai ter a oportunidade de ver, finalmente, uma das melhores peças dos últimos anos, transformada num filme digno, forte e arrebatador.
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Muitos leitores fazem referência ao “diálogo de mão única” que mantêm com os cronistas; mas a mão é dupla. Com o tempo, qualquer um de nós do lado de cá da página aprende a prever, mais ou menos, como será recebido o que escreveu, assim como amigos que compartilham rotineiramente a mesa no botequim sabem o que vai animar a conversa ou desandar o papo.
Crônica, porém, não é ciência exata, e às vezes a gente se surpreende. Foi o caso da semana passada. Escrevi sobre os mangaritos, tuberculozinhos humildes que, na minha cabeça, jamais teriam o poder de conduzir alguém ao computador. Pois levei um zero bem redondo em avaliação. Eu não imaginava o potencial das batatinhas, que deram origem a muitos e muitos emails, cheios de saudades e informações. O da Irene Rezende trouxe até uma revelação histórica:
“Meu pai tinha fazenda e plantava mangaritos que comíamos na sobremesa com melado. Desnecessário dizer que íamos ao paraíso e voltávamos. Você sabia que era uma das sobremesas prediletas do presidente JK? Papai chegou a mandar um carregamento para ele através de amigos comuns. Ele também gostava com melado feito da rapadura.”
Escrevi para a Irene perguntando como era essa sobremesa do JK:
“Se não me falha a memória, os mangaritos eram assados no forno, descascados e, quentes ainda, iam para mesa onde, já servidos, eram cobertos pelo melado. Não me lembro por qual motivo os mangaritos sumiram da fazenda, mas foram substituídos pelo cará com melado que também é uma ótima sobremesa, um pouco mais, digamos, rústica. O cará também era servido assado e sua polpa tirada com colher, porque a casca ficava meio grossa depois de assada. Segundo meu pai, era uma sobremesa muito servida nas fazendas antigas do interior de Minas.”
(O Globo, Segundo Caderno, 3.9.2009)
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