10.9.09

Os livros e a novela



Filha e neta de refugiados húngaros, cresci ouvindo histórias de Budapeste, da sua vida artística, de seus teatros, seus cabarés, seus incontáveis intelectuais que frequentavam os cafés como extensões da própria casa. Lá encontravam os amigos, liam os jornais e trocavam idéias sobre um mundo que, infelizmente, ia de mal em pior. Ainda assim, mesmo nas lembranças mais sombrias, era possível perceber o fulgor de uma cidade cosmopolita e sofisticada, uma espécie de Paris para iniciados, para onde convergiam todos os talentos.

Encontrar essa cidade extraordinária nas referências “oficiais” ao Império Austro-Húngaro, como filmes e livros, porém, sempre foi mais difícil. Viena, a outra capital, invariavelmente rouba os louros de Budapeste e, por mais que isso encha de ciúmes o coração magiar, é compreensível. Além de ser maior e mais importante, lá fala-se alemão, bem mais conhecido e acessível do que o impenetrável idioma que, em casa, sempre me pareceu tão comum.

Viena é, também, consideravelmente mais antiga do que Budapeste, que só passou a existir a partir de 1872, com a fusão das cidades de Buda e Pest. Mas essa relativa juventude era, como propõe o historiador John Lukacs (não confundir com o filósofo marxista Georg Lukacs, que sequer era seu parente), o que distinguia a capital da Hungria na virada do século. Viena entrava em decadência no momento exato em que Budapeste fervia. E se as lembranças dos velhos imigrantes são matéria fugidia e impressionista, os dados registrados mostram-se sólidos argumentos. É a partir deles que este Lukacs menos conhecido constrói “Budapeste 1900” (Editora José Olympio, 308 páginas, tradução de Ana Luiza Dantas).

Um só desses dados, por sinal, é suficiente para dar idéia do que era aquela cidade em desenfreado crescimento: em 1900, publicavam-se, em Budapeste, nada menos de 22 jornais diários! É um número inacreditável, ainda mais nos nossos tempos, em que o futuro dos jornais vive em discussão.

Quem lia tanta notícia? (Como jornalista, não posso deixar de fazer a outra pergunta: quem escrevia tanta notícia?) A verdade é que ali havia toda uma nação descobrindo-se a si mesma, procurando as suas raízes culturais mais profundas, atrás da sua literatura e da sua música, às voltas com as várias refrações visuais de si mesma. Havia (e ainda há) muito o que encontrar. Apesar de duas guerras e da ocupação russa, Budapeste continua única; seus edifícios, seu jeito de ser, os cheiros que vêm dos restaurantes, os sons da rua em que o barulho dos bondes sublinha a fala das pessoas.

Os anos dourados que Lukacs foi buscar, na esperança de resgatar a memória da cidade abafada pelos anos de comunismo e, sobretudo, pelo mito criado em torno da Viena da Belle Époque, duraram muito pouco. A amável e criativa convivência entre a aristocracia urbana, os ricos proprietários de terras e a burguesia em ascendência foi tragada pelo torvelinho de um nacionalismo malsão que pôs tudo a perder.

Hoje, no Brasil, ecos da velha Hungria podem ser encontrados nuns raros livros em português, como “O companheiro de viagem”, de Gyula Krúdy, ou o pequeno e encantador “O poste de vapor”, de Ferenc Molnár. Ambos foram traduzidos por Paulo Schiller para a Cosacnaify, que também publicou, de Molnár, “Os meninos da rua Paulo”, na tradução do meu Pai. Mas eles são apenas isso, distantes sinais de um país que, então, talvez se imaginasse melhor do que era. Quando chegamos a Sandor Marai, um dos meus escritores favoritos, já não há uma nota de otimismo. Toda a sua admirável literatura é o retrato de um tempo atormentado, onde não há margens para dias melhores.

John Lukacs estava na lista de escritores esperados para a Bienal e cheguei a ser sondada para um bate-papo com ele, mas, por algum motivo, cancelou a viagem. Pena, porque teria sido interessante conversar com alguém que, como eu, guarda na memória uma cidade que não viveu. É difícil enquadrar seu “Budapeste 1900” numa categoria específica; o livro mistura em doses mais ou menos iguais memória e história política, estudo demográfico, ensaio urbanístico. O que eu sei é que, se o título já não tivesse sido usado, “Fragmentos de um discurso amoroso” cairia, nele, como uma luva.

* * *

Vou ficar com saudades de “Caminho das Índias”. Não costumo assistir televisão por incompatibilidade de horário e porque já passo muito mais tempo do que devia diante de uma tela, mas ao longo do último mês fui fisgada pela trama de Glória Perez. Discordo de quem faz objeções à incongruência dos fusos horários entre Brasil e Índia, à facilidade com que os personagens vêm e vão entre continentes e outros detalhes de cunho prático. Desde quando história é para ter lógica? Se for assim, podemos começar implicando, de cara, com uma certa serpente falante que, um dia, convenceu uma moça a comer maçã. A novela teve dinâmica, suspense, elenco de primeira e direção de arte impecável. É kitsch? Claro que é, mas minimalismo tem hora. Rajastão e Bauhaus são antônimos. Com licença da Patrícia Kogut, dou nota dez para “Caminho das Índias” pelo conjunto da obra.

Também vou ficar com saudades da parceria com o Noblat, com quem troquei impressões tuiteiras da novela em tempo real. Foi divertidíssimo usar o Twitter para eliminar a distância entre o Rio e Brasília, e assistirmos televisão do mesmo sofá.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.09.2009)

Nenhum comentário: