2.7.09

Delírio tropical



Quando os primeiros pingos de chuva caíram, o asfalto do Boulevard 4 de Maio estava tão quente que a água evaporou, formando uma ligeira nuvem branca. Olhei para o chão assombrada: então era aquela a temperatura do meu cérebro?! Eram quase três da tarde, e eu estava andando por Parintins desde a hora do almoço, tonta com os 30 graus que, ao sol, pareciam 50. A umidade podia ser cortada com uma faca, mas nem ela nem o calor pareciam incomodar ninguém, exceto os dois gringos que se refugiaram junto comigo numa loja de camisetas e lembrancinhas de viagem. Como outras 70 mil pessoas, eles também estavam na cidade para ver o Boi Bumbá.

Ambos vinham da Alemanha, e aproveitaram a pausa forçada para comprar um pirarucu de madeira e um boizinho de pano preto com uma estrela na testa. Era a sua primeira visita ao Brasil mas, depois da noite anterior no Bumbódromo, já haviam se decidido: eram Caprichoso desde criancinhas. Eu entendia os gringos. Também havia começado minha carreira de espectadora de Boi Bumbá torcendo pelo Caprichoso. A diferença é que, menos de três horas depois, assim que o Garantido entrou na arena, virei a casaca. O espetáculo do boi azul foi lindo e luxuoso, mas o vermelho me ganhou com um boizinho branco voador, suspendido por um guindaste. Além disso, o cantor do Garantido, o cego David Assayag – que gravou “Vermelho” com Fafá de Belém, lembram? -- tem uma voz que chega a ser covardia.

Quando a chuva parou, nos despedimos e tomamos rumos diferentes. Os alemães tinham uma pesca de piranha agendada, e eu aluguei um triciclo para uma volta. Os triciclos de Parintins são riquixás ao contrário, em que os condutores pedalam atrás do freguês, como numa bicicleta de carga. Existem 300 deles, 150 azuis, 150 vermelhos. Os mais sofisticados têm assento acolchoado, adesivos, bandeirinhas. Levam até três pessoas e a corrida é cobrada de acordo com a cara do freguês. Depois de me estudar atentamente, o condutor chutou alto: seis reais.

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Por causa das cheias, metade de Parintins, incluindo o galpão do Garantido, estava debaixo d’água. Muitas casas foram abandonadas. Quem não tinha para onde ir subiu o piso com algumas tábuas, amontoou seus parcos pertences pelos cantos e continuou tocando a vida: aqui uma mulher lavava roupa, ali outra cozinhava. Crianças espiavam pela janela ou pela porta aberta e faziam pose para a câmera. Nas ruas inundadas, passarelas de tábuas garantiam o ir e vir, igualzinho a Veneza, em dia de aqua alta.

O mundo é bem redondo.

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Por toda a parte, das casinhas alagadas aos bares cheios de visitantes, dos barcos atracados nas margens do rio às gaiolas que trazem e hospedam turistas no porto, ouvia-se a música dos bois. Cada um deles apresenta 18 toadas novas por temporada, e no hit parade de Parintins, que deve ter o maior índice de caixas de som per capita do planeta, não dá outra coisa.

Mais tarde, ao contrário da noite anterior, o Garantido abriu o festival, e foi mesmo a beleza que se esperava. Na segunda-feira, já de volta ao Rio, soube que sagrou-se campeão. Foi uma vitória merecida.

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Garantido e Caprichoso revezam-se ao longo de três noites. Algumas coisas se parecem com o nosso desfile das escolas de samba, mas há mais diferenças do que semelhanças entre as duas festas. Os bois, que conservam o caráter de auto popular, ganham muito com o formato da apresentação. Eles não desfilam, e são bem mais teatrais do que as escolas. Sua iluminação é mais rica, e as alegorias imbatíveis. Pode ser que a música também seja muito boa, mas é tocada num volume tão alto que chega às raias da violência. Durante as duas noites em que assisti ao Boi, não consegui deixar de pensar no espetáculo perfeito que ele seria se o som estivesse numa freqüência compatível com o ouvido humano.

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Um dos pontos altos do festival de Parintins é a participação das torcidas, conhecidas como galeras. Os 35 mil lugares do Bumbódromo são divididos entre o vermelho do Garantido e o azul do Caprichoso; é tão séria a coisa que até o anúncio da Coca-Cola fica azul num dos lados do estádio. O mais curioso é que uma das metades está sempre parada e no escuro. É que, enquanto um boi está na arena, os torcedores do seu contrário não podem tugir nem mugir: qualquer manifestação extemporânea corresponde a preciosos pontos perdidos.

A galera iluminada, porém, dá um show de competência -- e de resistência física. Comandada por animadores estrategicamente colocados, faz coreografias, pula, levanta os braços, acende isqueiros, acena com cartões e lenços coloridos, bate palmas, canta, joga estrelas e corações para o alto. Lembra até platéia de abertura de jogos olímpicos, só que é incomparavelmente mais animado.

Já vi Copa do Mundo, já vi desfile de escola de samba, já vi show de todo o tipo, mas nunca vi, em lugar nenhum, espetáculo com a participação efetiva de tanta gente. Cada um dos espectadores do Boi pode dizer que foi decisivo para o sucesso da festa. É a cereja do bolo ou, quem sabe, o cupuaçu da tapioca: um festival que é único pela localização e pela grandiosidade nem precisava se dar a esse luxo.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.7.2009)

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