23.7.09


Tempo, memória, cortesia:
vítimas da informação?


-- Estou impressionada com as pessoas, -- disse a amiga que mora parte do tempo no Rio, outra em Nova York e o que sobra pelo resto do mundo. -- Aqui no Brasil ninguém responde mais a email, a convite formal, a nada! Não sei se é falta de educação, falta de tempo ou se as coisas agora são assim mesmo...

Se eu não tivesse ligado exatamente para responder a um convite, poderia ter pensado que estava diante de uma indireta: é que a carapuça parecia feita sob medida. Ainda que saiba que não responder aos amigos (e não agradecer aos livros que enviam) é imperdoável, ainda que comece praticamente todos os dias com a consciência culpada por causa dos emails que deixei de responder na véspera e já agoniada com os que não responderei ao longo das próximas horas, o fato é que, por mais que tente, não encontro tempo ou concentração para me manter em dia com o que a civilidade exige.

Este é um tema recorrente nas minhas colunas da “Revista Digital”, até porque atribuo boa parte da culpa dessa desatenção ao mundo hi-tech e à vida-ponto-com em que ando mergulhada há tantos anos. Cada carta manuscrita se transformou em centenas de emails, cada fonte de informação multiplicou-se ao infinito e está a um clique de distância. Resultado: de pessoa cortês que enviava flores em datas significativas e cartões bonitinhos escritos com letra até legível, virei um bípede sem dúvida bem informado, mas sempre em falta com suas obrigações elementares.

Há uns tempos, em desespero de causa, escrevi isso no Facebook (e na Revista): “Cora Rónai está com o trabalho todo atrasado!”. Era só parcialmente verdade. Para variar, tudo estava atrasado na minha vida.

“A sobrecarga de informação acertou o passo comigo, me ultrapassou e periga me jogar fora da estrada,” disse então. “Como todo mundo, eu também precisaria de um dia de 48 horas para ficar minimamente em dia com o que me cerca. Recebo e compro mais livros do que consigo ler, tenho mais DVDs do que posso assistir pelos próximos dez anos, CDs e revistas se amontoam ao meu redor, há mensagens por responder na secretária eletrônica, no celular e na mailbox.”

De lá para cá, nada melhorou; pelo contrário. Tudo está ao nosso alcance ao mesmo tempo, um link puxa outro, os torpedos e o Twitter piam insistentemente no celular e no notebook. Olho para os gatos enroscados no tapete e invejo sua vidinha singela. A quantidade de informação que um gato administra está perfeitamente de acordo com o seu tempo físico e com a capacidade do seu cérebro: onde ficam os potes de água e ração, quem são os bípedes e quadrúpedes com quem convive, o que significam os vários ruídos da casa, o que é bom para brincar e o que é melhor deixar quieto. É um universo descomplicado, que permanece inalterado desde que os gatos são gatos. A mesma coisa acontece com os cães e com quase todas as espécies do planeta. Até a lagartixinha pálida que vive no lavabo não tem preocupações muito diferentes daquelas que passavam pela cabeça dos seus avôs dinossauros.

Já a complexidade da vida dos humanos, depois de alguns milênios em banho-maria, vem se acelerando a uma velocidade assustadora. Nosso cérebro continua igual ao dos nossos antepassados que viviam em aldeias de umas poucas almas, mas o tempo encolhe progressivamente, pois tem que ser dividido em fatias cada vez menores. Nas pequenas aldeias, a vida seguia o ritmo do sol, todos se conheciam desde sempre e, tirando as atribuições básicas da vida cotidiana, por árduas que fossem, não havia muito o que fazer. Dependendo da capacidade de imaginação de cada um, havia ainda menos em que pensar. As notícias que chegavam de fora vinham com anos de atraso e jeito de lenda; o que importava saber, de verdade, se restringia à vizinhança imediata, ao espaço conhecido.

O próprio mundo em que Andy Warhol previu quinze minutos de fama para cada um -- ainda ontem! -- era um mundo razoavelmente controlável, pré-internet, em que a sobrecarga de informação (information overload) não existia nem como expressão. Na época, o peso maior da equação estava na fama, uma figura de retórica distante e ilusória; hoje está no tempo, real. Quinze minutos no vertiginoso ano de 2009 são uma eternidade, uma abundância de segundos de que ninguém mais dispõe.

O ser humano é, por definição, um animal multi-tarefa, mas há um limite para a sua capacidade de processamento de dados. Se já não a ultrapassamos, estamos perto disso, como provam os esquecimentos constantes e a falta de memória que não poupam ninguém, numa espécie de gripe suína dos neurônios.

Quem tem lembrança de um pai ou avô que sabia longos poemas de cor fica pasmado: como era possível?! A conclusão quase inevitável é que não se fazem mais pessoas como antigamente. Mas talvez não seja bem assim. A capacidade de armazenagem do cérebro dos nossos antepassados não era diferente da nossa; apenas estava ocupada de outra forma. Entre outras infinitas coisas, eles não precisavam administrar centenas de contatos no Orkut nem seguir milhares de pessoas no Twitter.


(O Globo, Segundo Caderno, 23.7.2009)

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