A garotada que leu Harry Potter e que não se segurava de impaciência entre o lançamento de um livro e de outro conhece a sensação: durante toda a década de 90 esperei, ansiosamente, pelo terceiro volume de “The Last Lion”, biografia de Winston Churchill que William Manchester começara a publicar alguns anos antes. Os dois primeiros volumes, “Visions of Glory” e “Alone”, que haviam saído em 1983 e 1988, respectivamente, e que, juntos, somavam 1.729 páginas, estavam entre o que eu havia lido de melhor, superando, em ritmo e estilo, os oito volumes da minuciosa biografia oficial escrita por Martin Gilbert. É claro que eu sabia como a história acabava mas, no caso, isso não fazia a menor diferença.
Eu não era a única. Só em inglês os dois livros de Manchester haviam vendido mais de 500 mil exemplares e, quando eu perguntava nas livrarias americanas se havia previsão de lançamento, percebia no olhar dos livreiros o brilho feliz da expectativa de um best-seller -- mas, infelizmente, ninguém tinha qualquer informação.
Até que, em agosto de 2001, li, no New York Times, a entrevista mais triste. William Manchester, então com 79 anos, debilitado por dois derrames que se seguiram à morte da mulher, em 1998, desistira de terminar a biografia em que trabalhava há 25 anos.
“Durante 50 anos, escrever para mim foi tão fácil quanto respirar. Agora, não consigo mais”, disse ele ao repórter Dexter Filkins. “O sentimento é indescritível.”
Jornalista, professor e historiador, William Manchester era um pesquisador e autor incansável. Publicou 18 livros, alguns muito bem recebidos pelos leitores, como “Morte de um presidente”, sobre o assassinato de Kennedy, que vendeu mais de um milhão de exemplares. A crítica nem sempre tinha a mesma opinião do público, mas este parece ser o karma habitual de quem comete o pecado de transformar em temas palpitantes o que, na escola, se aprende com sangue, suor, trabalho e lágrimas.
Manchester era conhecido também por ser capaz de escrever dias a fio sem sequer parar para dormir, e explicava isso pela ânsia de pôr no papel os pensamentos que lhe vinham mais rápidos do que as palavras.
“Eu trabalhava o dia inteiro, a noite toda, o dia seguinte e mais a noite, até o terceiro dia. Aí olhava para o relógio, e se eram 15h30, pensava: ‘Que ótimo, ainda tenho três horas para escrever’. Adorava isso! Eu conseguia pensar uma dúzia de parágrafos adiante e rabiscava pequenos símbolos para me lembrar do que viria. É que não conseguia escrever depressa o suficiente.”
Os derrames foram cruéis. A perna esquerda ficou paralisada mas, tirando isso, o velho professor não aparentava outras seqüelas. As conexões que a sua mente executava com tanto brilho, porém, haviam desaparecido, e o que antes era segunda natureza passou a ser um suplício. Quando foi entrevistado, levava praticamente o dia inteiro para escrever uma carta:
“Minha mulher se foi e não consigo mais escrever. Se eu acreditasse no poder da oração, rezaria o dia inteiro para que ele me levasse embora.”
William Manchester morreu em 2004, aos 82 anos. “The Last Lion” permanece inacabado. As 237 páginas que havia escrito do volume final da biografia e os milhares de notas que deixou foram retomadas, ainda em sua vida e com seu consentimento, pelo jornalista australiano Paul Reid. As últimas notícias a respeito do livro previam sua publicação para 2007 ou 2008, mas esses anos, como sabemos, vieram, passaram, e nada aconteceu. O resto é silêncio.
* * *
O que me trouxe tudo isso de volta foi a recordação de um outro livro, chamado “A world lit only by fire” (aqui lançado com o inapropriado título de “Fogo sobre o chão”). As circunstâncias em que Manchester o escreveu falam muito sobre o autor. Em 1989, depois de uma temporada entrando e saindo de hospitais, os médicos sugeriram que desse um tempo nas pesquisas sobre Churchill e fosse para um clima mais quente para descansar e se curar. Ele obedeceu. Mas, como estava devendo o prefácio para a biografia de Fernão de Magalhães escrita por um colega, pôs-se a trabalhar no texto que, calculava, teria -- se tanto -- uma dúzia de páginas.Algum tempo depois, estava com mais de 300 páginas em mãos. Na tentativa de explicar Fernão de Magalhães a partir do seu tempo e da sociedade em que vivia, tinha escrito um ótimo livrinho sobre o Século XVI. “A world lit only by fire” é uma deliciosa visão pessoal, ainda que historicamente incorreta, sobre o período. Mas o que guardei dele de fato foi o título, "Um mundo iluminado apenas pelo fogo",e a noção assombrosa que este título reitera de que, durante milhares de anos, a única luz que brilhou nas noites cheias de sustos e mistérios do planeta foi o fogo.
Já a lembrança desse livrinho, por sua vez, me veio em algum momento entre Manaus e Parintins, num barco que descia o Amazonas. Era madrugada, o barulho do motor mal se ouvia e, à nossa volta, naquela imensidão de água e céu, na noite de lua nova, fazia um escuro tão escuro que tudo era possível.
(O Globo, Segundo Caderno, 16.7.2009)
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