O vôo 447 e a tristeza de todos nós
Escrevo a coluna na segunda-feira. É uma rotina: vou dormir domingo arrumando mentalmente as idéias que surgiram ao longo da semana e, no dia seguinte, me entendo com a que pareceu mais interessante. No domingo passado pensei numas histórias que ouvi, numas nojeiras políticas que têm me tirado a esportiva (qual é a novidade?), na impossibilidade de arrumar os livros e na semelhança entre o escritório e alcachofra. A segunda, porém, cancelou todos os planos. Como é que se pode escrever quando um avião some só assim, no meio do Atlântico?O dia ficou suspenso e triste. Por onde andei as pessoas estavam abaladas, mesmo aquelas que jamais voaram, esperando as explicações que provavelmente nunca teremos. Além de sair logo ali do Galeão, levando amigos, vizinhos, conhecidos ou conhecidos de conhecidos, um vôo Rio-Paris é sempre um sonho, e ninguém se conforma quando sonhos viram pesadelos.
Sim, é verdade que qualquer um de nós corre mais riscos de ser atropelado, de ser vítima de bala perdida ou de desastre de carro -- mas, como observa o Millôr, avião é o único meio de transporte em que se tem mau pressentimento. Viajamos de carro como se nada fosse, ficamos perfeitamente à vontade em trens e a nossa maior preocupação, quando pegamos barca ou navio, é se vamos ou não enjoar.
Quando um avião cai, desafia o engenho humano que venceu a gravidade e as leis da natureza, pondo pessoas num espaço que, durante milhões de anos, foi reserva exclusiva de aves e nuvens. Os outros meios de transporte apenas ampliam a nossa capacidade de percorrer distâncias em elementos que nos são familiares; mas quem disse que podíamos voar impunemente?
Não me recordo de desastre marítimo ou ferroviário em que familiares das vítimas se lembrassem de premonições. A queda de um avião, porém, é tão traumática, que os menores gestos viram vaticínios. Ouvimos admirados as coincidências e, no fundo, nos sentimos reconfortados, porque seria bom acreditar que temos algum poder sobre o destino.
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Alguns amigos me ligaram para falar do acidente. Pessoas com quem precisei conversar sobre os assuntos mais diversos acabaram falando sobre o acidente. A manicure falou sobre o acidente, o rapaz que veio consertar a máquina de lavar falou sobre o acidente, os porteiros falaram sobre o acidente. Da noite para o dia, viramos todos especialistas em aviação, o que é compreensível: diante de um horror tão inexplicável, precisamos exorcizar as emoções e, se possível, encontrar uma razão que nos sossegue.Na segunda à tarde, a turma da internet já falava em gaiola de Faraday com total intimidade, mais ou menos como a turma do botequim fala em escanteio. Precisei recorrer ao Google para descobrir que essa gaiola foi uma experiência de Michael Faraday (1791-1867) para demonstrar que condutores carregados ficam eletrificados apenas na superfície.
No blog, discutiam-se causas possíveis e impossíveis, a velocidade com que o avião desapareceu, a ausência de comunicação. Na terça-feira à noite, a Adriana, que é controladora de vôo, escreveu o seguinte:
-- É como se a tripulação tivesse sido colhida no meio dos seus afazeres, sem tempo para nada... Lembra das pessoas petrificadas pelo Vesúvio, em Pompéia?
E meu amigo Beto Sandall, comissário, explicou porque, apesar de tudo, gosta tanto do seu trabalho:
-- Quando a gente vislumbra a profissão de voar, vem junto uma sensação estranha de liberdade e de plenitude. Alcançamos as alturas, voamos como os pássaros e, livres como eles, somos também frágeis e impotentes. O amor por voar, porém, sempre fala mais alto.
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Pensei muito nos passageiros e, principalmente, na tripulação do vôo 443, que saiu do Rio para Paris na segunda-feira à tarde. Que sentimento horrível, refazer a rota de um avião que acabou de desaparecer! Como é que se pode agir com naturalidade nessas circunstâncias? Como é que se faz de conta que está tudo bem, quando se sabe que todos a bordo estão pensando na mesma coisa pavorosa e impronunciável?* * *
Detesto aeroportos e as burocracias de viagem, mas adoro aviões. Gosto sobretudo das primeiras horas do vôo, quando relaxo do estresse do embarque e fico só com um livro, umas comidinhas e a felicidade de saber que ninguém vai me interromper, que o telefone não vai tocar, e que, até aterrissarmos, nada, rigorosamente nada, será responsabilidade minha. Mais tarde, é claro, vêm a falta de posição na poltrona (por maior que ela seja) e a sensação de que o tempo não passa. Uma vez eu ainda estava acordada quando o avião passou ao lado de uma tempestade de raios. Foi um dos espetáculos mais bonitos que já vi, e em nenhum momento me pareceu algo perigoso. Às vezes, a ignorância é uma benção.(O Globo, Segundo Caderno, 4.6.2009)
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