28.2.08



Temporada em Vigàta


Os gatos e as pessoas que me vêem acham que estou no Rio, mas é só impressão. Na verdade, estou na Sicília, num lugar que já se chamou Marina di Girgenti, Molo di Girgenti e Porto Empedocle, mas se tornou tão conhecido como Vigàta que, há cinco anos, responde oficialmente por Porto Empedocle Vigàta. Não é lá grandes coisas. Não chega a ter maior interesse histórico e, a julgar pelas fotos, não seria considerado bonito em canto algum; na Itália, aquela covardia de país onde cada cidade é mais linda que a outra, chega a ser uma aberração, de tão insignificante. Com menos de 18 mil habitantes espalhados por 24 km2 (cerca de meio Rio de Janeiro!), pode dar ao turista de passagem a idéia de ser um dos recantos mais tediosos do planeta.

E, vai ver, é mesmo.

A Vigàta onde me perdi do mundo, porém, tem índices de criminalidade espantosos. As duas famílias da Máfia local vivem se matando e, quando acontece de se darem trégua, cidadãos comuns tomam a si a tarefa, cheios de vigor. Em Vigàta há traficantes de drogas e de gente, há contrabando, há crimes passionais, há malfeitores de todos os tipos – e, quando tudo isso falha, ainda há crimes acontecidos durante a guerra que ficaram por desvendar. Last but not least, há também um comissário de polícia muito especial, chamado Salvo Montalbano.

* * *

Não me lembro mais de quando me falaram pela primeira vez em Andrea Camilleri, o escritor que criou o comissário e, de quebra, teve o privilégio de ver a cidade onde nasceu adotar o nome fictício que lhe deu. Esqueci até que, na época, cheguei a ler um dos seus livros, e não achei nada demais. O que eu sei é que, quando a Laurinha Gasparian, da Argumento, me ligou cheia de entusiasmo pelo inspetor Montalbano, corri atrás dos livros.

O que fez a diferença, dessa vez, foi a ordem da leitura. Ao contrário de tantos policiais em que se pode mergulhar no clima a partir de qualquer ponto da saga, no caso de Montalbano é fundamental começar pelo começo, ou seja, por “A forma da água”. Camilleri apresenta aos poucos o seu personagem e o mundo que o cerca, onde políticos, criminosos e advogados convivem em alegre promiscuidade, onde nem sempre a lei é justa, e onde, invariavelmente, a corda arrebenta para o lado mais fraco. Parece familiar? Pois é essa familiaridade que, entre outras coisas, faz do comissário um tipo tão simpático para qualquer brasileiro. Sabemos o que ele enfrenta, vivemos a mesma burocracia, sofremos com o mesmo excesso de leis e a mesma falta de justiça.

Assim como Donna Leon e seu comissário Brunetti, em Veneza, Camilleri aproveita os casos de Montalbano para tecer bem mais do que deliciosas charadas policiais. Nos dois casos, importa menos o crime do que o cotidiano dos inspetores, suas dúvidas e suas opiniões em geral, da roubalheira no governo aos efeitos da globalização. Brunetti é casado, tem filhos e todas as alegrias e angústias de um bom pai de família; já o solteirão Montalbano tem apenas uma namorada que vive em Gênova. Ambos são intelectuais que não ousam dizer seu nome, adoram comer, desprezam a cúpula da polícia, rezam para não ser promovidos e, quase sempre, trabalham na contramão.

Montalbano, contudo, leva a melhor por ser cria de um siciliano. Apesar de viver na Itália há décadas, a americana Donna Leon não consegue se afastar completamente dos padrões legais anglo-saxões, ao passo que Camilleri sabe que o buraco é mais embaixo. Assim, enquanto Brunetti é um ser essencialmente civilizado, Montalbano é um ser essencialmente safo. Camilleri é também melhor escritor do que Donna Leon – e aqui no Brasil, ainda por cima, teve a sorte de encontrar uma tradutora extraordinária, Joana Angélica d’Avila Melo, capaz de dar nó em pingo d’água. Não há comparação entre as suas traduções maravilhosamente inventivas e a correta tradução norte-americana em que li “A paciência da aranha”, ausência inexplicável na coleção de volumes já publicados pela Editora Record.

Vale observar que traduzir Camilleri não é tarefa para amadores. Quando comentei com um italiano que estava adorando o comissário Montalbano, ele me perguntou em que língua eu estava lendo. Respondi português, e recebi o mesmo ar de compaixão que eu dirigiria a alguém que me dissesse que está lendo Guimarães Rosa em servo-croata:

-- Mas você está perdendo o melhor! A linguagem do Camilleri é sui generis, um misto de italiano com siciliano que só ele sabe de onde tirou.

Pois mandei vir “La paura di Montalbano”, volume de contos que não saiu aqui. Não tenho italiano suficiente para apreciar as sutilezas da língua camilleriana, até porque diversas palavras do siciliano fazem mais sentido para ouvidos brasileiros do que para italianos nativos, mas percebo o bastante para notar que a verve e o brilho não se perderam em absoluto.

* * *

Aceitem o conselho: deixem-se levar, e embarquem para Vigàta com Camilleri. Até o momento, há dez livros do comissário Montalbano em português. Mesmo que comprados simultaneamente, ainda saem mais em conta do que uma ponte aérea -- e garantem muito mais diversão. Eu, de minha parte, ainda fico na Sicília por uns tempos. Mal acabei de ler os contos no original, e já ganhei de um amigo a série filmada para a televisão.

Arrivederci!


(O Globo, Segundo Caderno, 28.2.2008)

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