21.2.08


Duas histórias: começo pela pior

A melhor é a linda trajetória da vida de Geraldo Jordão Pereira,
o Coley, um homem de palavra que passou à ação



Eu não sou a Petrobrás. Eu não tenho nada secreto no notebook. Ainda assim, ele é protegido por um sistema em que a senha é a digital do meu indicador -- e não há hipótese, mas não mesmo, de que eu venha a embarcá-lo em qualquer mala despachada, no mesmo avião e sem escalas. Ele vai na bolsa, ali, do meu lado, coladinho. Nunca viajei com disco rígido com dados, mas, caso o fizesse, seria nas mesmas condições.

É bem provável que a proteção do Vaio seja só para inglês ver, e que qualquer um seja capaz de abri-la; mas, para isso, primeiro seria preciso roubá-lo de mim. Também é claro que, se eu tivesse dados que valem ouro no computador, o meu disco inteiro seria muito bem criptografado. E é claro, ainda, que eu teria um sistema de segurança adicional por hardware.

O fato é que, hoje em dia, sem tiroteios, assassinatos ou, no mínimo, um boa-noite-cinderela, só se rouba notebook com dados confidenciais de quem deliberadamente se deixa roubar. O que deixa algumas curiosas possibilidades em aberto:

1) Não havia nada nos notebooks (se é que havia mesmo notebooks), e o “roubo” foi uma cortina de fumaça para distrair a atenção do público do caso dos cartões corporativos;

2) Havia dados nos notebooks, “roubados” de antemão para justificar um vazamento de informações que apenas ainda não foi descoberto pela imprensa;

3) Havia ou não havia dados, tanto faz, e os notebooks foram roubados porque estavam, literalmente, dando sopa, e sendo tratados com a incúria e o descaso com que, neste país, se trata tradicionalmente a coisa pública.

Se as minhas hipóteses estão erradas, e se havia mesmo “segredos de estado” nos notebooks, como quer fazer crer o presidente que foi para o frio, este governo, e os prepostos com que está aparelhando o país, de alto a baixo, são ainda mais incompetentes do que parecem. Para ficar num exemplo até infantil, qualquer pessoa que vá com razoável freqüência ao cinema já cansou de ver agentes algemados aos seus computadores. Mandar “segredo de estado” por container é coisa dos Três Patetas.

Ou dos 40 ladrões.

* * *

Não me lembro mais de quando conheci Geraldo Jordão Pereira, o Coley. Nossos pais eram amigos, e devo tê-lo visto muito nos almoços da José Olympio, que freqüentei com Papai quando menina. Naquela época, pela diferença de idade, é lógico que nem reparávamos um no outro. Mais tarde, quando ele criou a Salamandra, retomamos contato, já como adultos indo à luta. Coley e seu filho Marcos foram os editores de “Sapomorfose”, livrinho que escrevi para crianças lá se vão 25 anos.

Gente que trabalha com livros é, de natureza, uma espécie à parte, que me toca o coração por toda uma história familiar. Mas posso dizer, sem exagero, que o Coley foi das pessoas mais educadas e gentis que conheci. Herdou do pai, José Olympio, o amor pelos livros, e da mãe, Vera Pacheco Jordão, uma curiosidade universal e um particular amor pela natureza. Jantar com ele e com a Regina era uma felicidade, uma garantia de boa companhia e de ótima conversa. Regina, sempre animada e falante; o Coley, sempre sorridente e quieto, mas também cheio de surpresas, porque era entusiasmadíssimo pelo que fazia -– e fazia as coisas mais inesperadas.

Um dia, imaginem, aceitou dirigir o Jardim Botânico. Não sei se vocês se lembram do Jardim Botânico em 1985. Eu lembro, porque levava meus filhos para passear, e era devorada pela frustração e por um perpétuo sentimento de insegurança, gerado pela sujeira e pelo abandono. Achei que o Coley tinha ficado maluco; aquilo era um vespeiro, uma burocracia sem limites, um centro de empurra e de brigalhadas de governo. Nenhuma pessoa em sã consciência, com aptidão para tantas outras atividades, pegaria aquele abacaxi.

Pois o Coley, tipicamente, pegou. E descascou bem descascadinho, criando uma Associação de Amigos que revolucionou o parque, e fazendo, entre outras coisas, um convênio com a Funabem, para que menores infratores tivessem aulas com os experientes jardineiros de lá. Ele deixou o cargo dois anos depois, mas o Jardim Botânico (felizmente!) nunca mais foi o mesmo.

Quando comprou os direitos brasileiros do “Código da Vinci”, por uma ninharia, realizou o sonho de todo o editor. Acertou no milhar. Podia ter feito mil coisas fúteis e agradáveis com a dinheirama; em vez disso, separou uma parte ponderável daquilo tudo e criou um fundo para ajudar ONGs na Zona Oeste. Volta e meia, lá estava ele percorrendo ONGs, procurando e descobrindo pessoas de valor, dedicando tempo e atenção aos seus semelhantes.

Às vezes falava do assunto com os amigos, mas sempre com a elegância e a discrição que foram a marca registrada da sua vida. Quem o visse sem conhecê-lo jamais diria que ali estava um homem de ação; e, no entanto, não consigo pensar em expressão melhor para descrevê-lo.

Coley foi um grande amigo e um grande exemplo. Para mim, será sempre uma grande saudade.


(O Globo, Segundo Caderno, 21.2.2008)

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