6.2.08


Do alto dessas estantes,
quarenta anos me contemplam

No dia em que os marceneiros foram embora, em que os pedreiros terminaram os ajustes, em que a Luciene deixou o chão feito um brinco e em que, finalmente, eu tive coragem de me aventurar pela área nas minhas muletas, fiquei pálida de espanto: o meu escritório nunca, jamais, esteve tão arrumado. Os livros estavam perfiladinhos nas estantes, tudo tão perfeito que parecia um cenário.

E, de certa forma, era.

Afinal, os livros haviam sido arrumados pelos marceneiros, a meu pedido: imaginei que seria mais fácil lidar com eles nas estantes do que no chão. Como há duas semanas não faço outra coisa a não ser mover livros de um canto para outro, não tenho mais tanta certeza; por outro lado, para gente com a minha inclinação, este é um trabalho pessoal e intransferível que, estejam os livros no chão ou nas estantes, toma mesmo um tempo infinito – e é muito mais difícil de resolver do que o problema da tralha de que falei há algumas semanas. Vocês sabem, tralha é feito pornografia: a gente sabe o que é quando vê. Há tralha à qual a gente se apega, mas que sabe, não obstante, que tralha é e tralha continuará sendo. Já livros...

* * *

Andei fazendo cálculos. A nova estante é dividida em 102 módulos, em cada um dos quais cabem, em média, 25 volumes. Seriam uns 2.500 no total se, em vários desses módulos, não houvesse fila dupla. Sem contar com os da sala, os do corredor ou os do meu quarto, acho que, num cálculo otimista, há coisa de 3.500 livros para arrumar (cálculo otimista, no caso, é para baixo). O total da casa anda pelos cinco mil. Nem é tanto. Comecei a fazer essa biblioteca aos 13, 14 anos; ora, em 40 anos, são apenas 125 livros por ano, uns dez por mês.

* * *

Imaginem, então, 3.500 livros completamente misturados, de cabeça para baixo uns, de lombada para dentro outros, dicionários ao lado de guias de viagem, as edições preciosas da Nova Aguilar ao lado de pockets americanos que já deveriam ter ido para a reciclagem há décadas. 3.500 livros que não podem ser arrumados por bibliotecários porque, nas minhas estantes, eles obedecem a uma ordem sentimental que qualquer outra reviraria pelo avesso.

Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Rezende e Rubem Braga devem ficar juntos; Clarice Lispector e sua irmã Elisa, de quem às vezes até gosto mais, são inseparáveis; Lygia Fagundes Telles, que amo apaixonadamente desde criancinha, tem que ficar ao lado de Cecília Meirelles, muito embora a Lygia, ao que eu saiba, nunca tenha publicado poemas (publicou, Lygia?). Ficam ambas, claro, na mesma estante do amigo tímido e retraído do meu Pai que, durante os anos difíceis da minha juventude, foi um confidente falante e divertido ao telefone, o tio Carlos, cujos livros trazem na capa o nome de Carlos Drummond de Andrade. E como separar os livros de Papai dos livros do tio Aurélio? (Aliás, tia Marina, muito obrigada pelos novos livrinhos, ficaram lindos!) Enfim, estante, aqui em casa, é menos questão de biblioteconomia, do que de família e de bem querer.

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Há outras questões, além dessa. Deixar de aproveitar o terremoto que é uma arrumação geral para se desfazer de excessos é perder a chance de ter espaço pronto para as novidades que a sorte, o futuro e os pacotes da amazon.com hão de trazer. Do que se desfazer? Algumas escolhas foram fáceis: tecnologia que já ficou defasada mas ainda não ganhou status de curiosidade arqueológica, literatura estrangeira que já saiu em novas e melhores traduções, romances que não vou ler nunca, muita coisa de Ciências Sociais da época em que eu era uma pessoa séria (a frivolidade sendo, como se sabe, uma dura conquista).

O caso das duplicatas foi difícil. Tenho "Os Lusíadas" nas obras completas de Camões da Nova Aguilar; tenho numa edição simpática e boa de ler, de 1931, que me acompanha desde sempre e está caindo aos pedaços; e tinha duas edições facsimilares. Com qual ficar? Acabei me desfazendo de um dos facsímiles, porque é mais uma curiosidade do que um livro. A edição batidinha de 1931 já sabe tudo, já abre nas páginas certas, nos trechos de que eu gosto mais (razão pela qual hesito em mandar encaderná-la novamente). E ninguém é doido de pôr fora aquela edição maravilhosa das obras completas. “Grande Sertão”, mesma coisa. Também está nas obras completas da Nova Aguilar; em duas edições comemorativas bem bonitas; numa daquelas preciosidades da José Olympio, com ilustrações do Poty; e na releitura radical que a Bia Lessa fez para a Nova Fronteira.

Obras completas levantam, por sinal, outra dúvida séria: a sua existência justifica que se passem adiante as edições separadas dos vários volumes do autor? E a existência de duas (Auden) ou três (Shakespeare) diferentes edições de obras completas?! Perdida entre tantos e tão torturantes dilemas, o fato é que, quanto mais arrumo o escritório, mais desarrumado ele fica. O que, pelo menos, uma certeza já me trouxe: diante da arrumação aleatória e sentimental de uma biblioteca, enxugar gelo é ocupação saudável e produtiva.

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Feliz Ano Novo!


(O Globo, Segundo Caderno, 7.2.2008)

Em tempo: Alguém conhece um bom encadernador para recomendar?

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