Uma história de horror
Como um cãozinho brasileiro quase foi deportado para a morteRecebi esta carta da Carmen Sílvia Ribeiro, de 22 anos, moradora do Humaitá:
"Tenho um poodle de 3 anos, que está comigo desde que nasceu. Luan é dócil, esperto, sadio, brincalhão, muito querido. Não desgruda de mim um instante. Em dezembro passado, fui visitar minha mãe, que mora na Alemanha, e levei-o comigo. Toda a documentação foi providenciada: vacinação, exame sorológico, certificado de microchipagem e autorização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Vigiagro), com data de 28 de novembro de 2006. Desse documento, consta que seria válido até 5 de junho de 2007. Voltei para o Brasil no dia 2 de junho. Cheguei às 5h30m ao Aeroporto Internacional Antonio Carlos Jobim e, na passagem pela Alfândega, os funcionários do Ministério da Agricultura apreenderam Luan, dando ordem à Polícia Federal e à empresa Air France para que ele fosse devolvido imediatamente (assim mesmo, grifado, como se encontra no termo de apreensão) no avião das 16h.
Motivo? A documentação de entrada não era válida, apesar de não haver qualquer referência, na documentação de saída, dos procedimentos a serem observados quando da entrada. Fui informada pelos policiais federais que, ao chegar à Alemanha, Luan, que não estaria portando qualquer documento válido para essa nova saída, seria incinerado em poucas horas, como é de praxe naquele país com animais sem documentação.
Tentei argumentar com o funcionário do MA, que se dizia ’veterinário’, que nossa chegada se deu no prazo de validade do documento por eles expedido, mas ele disse que aquele era o prazo da vacinação, e que o documento só valia por dez dias (embora dele não conste essa informação). Nas instruções que recebi sobre ’procedimentos para transporte de animais’ está escrito: ’Portar certificado zoosanitário internacional, emitido por médico veterinário oficial do Ministério da Agricultura do país de origem.’
Ora, para mim, país de origem é de onde o animal é originário. Se era para ser diferente, ou se as autoridades queriam comunicar outra coisa, que deixassem claro, pois cidadãos comuns, que não têm intimidade com expressões como essa, podem se confundir. Para as autoridades sanitárias, "país de origem" seria a Alemanha, de onde o cachorrinho chegara.
A Polícia Federal, que foi muito gentil, permitiu que eu permanecesse durante todo o domingo com Luan, preso na caixa de transporte onde viajou, no setor de embarque. Mais tarde apareceram outros dois funcionários do Vigiagro que, como o primeiro, também se declararam ’veterinários’. Sua única preocupação era despachar meu cachorro para os fornos alemães. Frios e autoritários, não admitiam qualquer outra solução, embora o artigo 17 do decreto 24.548, de 3 de julho de 1934, em que se baseou a apreensão, autorize o encaminhamento do animal ’aparentemente sadio, no momento do desembarque’, a uma quarentena, para observações e exames. Os ’veterinários’ disseram que o Vigiagro não dispõe de uma clínica para este fim. Ofereci encaminhar meu Luan a uma clínica particular, evidentemente às minhas expensas, mas disseram que isso não era possível. Quarentena, só em clínica oficial - que não existe! Assim que ficou claro que não estavam dispostos a usar do bom senso, fui obrigada a impetrar um mandado de segurança na Justiça Federal. A juíza de plantão concedeu uma liminar, proibindo que meu cachorro fosse enviado de volta à Alemanha. Na noite de domingo, Luan foi levado para o departamento de cargas da Air France, ainda preso na caixa de transporte.
Consegui uma entrevista com a substituta do diretor no antigo Galeão. Esta funcionária, outra ’veterinária’, ofereceu-me duas opções: retornar com o cãozinho para a Alemanha ou tentar resolver a situação em Brasília (!). A essa entrevista fui acompanhada de uma veterinária de verdade, que ficou chocada com a situação, especialmente com o descaso de todos em relação ao destino do Luan.
Saindo dali, fomos novamente ao aeroporto, onde a veterinária de verdade examinou Luan, fazendo inclusive testes de laboratório, e forneceu um atestado garantindo que ele goza de plena saúde. Não adiantou. Os ’veterinários’ do MA permaneceram irredutíveis, mostrando-se inclusive muito irritados com a demora em mandar o Luan para os fornos crematórios da Alemanha. Só na terça-feira o dr. Guilherme Couto de Castro, juiz da 19ª Vara Federal, sensível à gravidade do problema, deferiu integralmente a liminar requerida no mandado de segurança, determinando a libertação do Luan.
A norma em que se baseia o MA induz qualquer cidadão a erro, já que a palavra origem refere-se, segundo o Aurélio, a ’nascimento, naturalidade’. Logo, é compreensível que eu tenha entendido que o certificado obrigatório era justamente o que tinha providenciado. Mas de que adianta manter funcionários ’especializados’, se eles pouco se importam com pessoas e animais? Para deportar não há necessidade de ’veterinários’, basta a PF. Que, aliás, se portou com dignidade e humanidade, ajudando no que pôde. Durante as 72 horas em que Luan permaneceu no aeroporto, onde podia visitá-lo uma vez por dia, para dar-lhe água e comida, eu também me senti trancafiada naquela caixa, no departamento de carga. Chorei e sofri muito com e por ele. Perguntei a um dos ’veterinários’ se sabia o destino que lhe seria dado se retornasse à Alemanha. Ele deu um sorriso, abriu os braços e não disse nada. Nem precisava. O gesto havia sido claro: ’Não tô nem aí’.
É importante assinalar que a legislação em que o MA se baseia é de 1934. 1934! Desde então, passaram-se 73 anos. Em mais de sete décadas, o mundo evoluiu indescritivelmente - mas a lei brasileira parou no tempo. Os agentes do Vigiagro lotados no aeroporto continuam no ano de 1934, certamente em algum regime nazista. Soube que várias pessoas passaram pelo que passei. Algumas, com menos sorte do que eu, tiveram seus animais ’deportados’ para fornos crematórios, por total falta de humanidade, sensibilidade e bom senso de agentes que se autodenominam ’veterinários’."
A advogada da Carmen me informou que, em julho, saiu sentença determinando que Luan fique no Brasil. A Advocacia Geral da União e o MP apelaram, ou seja: a decisão ainda pode ser revista, e o cãozinho, deportado.
Estou horrorizada.
(O Globo, Segundo Caderno, 23.8.2007)
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