16.8.07


Harry Potter: missão cumprida

Enquanto isso, no Rio, as forças do mal se abatem sobre os gatos indefesos do Parque Lage


O novo Harry Potter, que chegou às livrarias há pouco menos de um mês, foi recebido com ainda mais estardalhaço do que de hábito. Como sabe qualquer pessoa que não tenha sido abduzida recentemente, “Harry Potter and the Deathly Hallows”, que aqui se chamará “Harry Potter e as relíquias da morte”, é o ponto final da série.

Para muita gente, o retumbante sucesso desses sete livros é inexplicável. Tenho amigos que tentaram ler o primeiro volume sem qualquer preconceito -- na época, Harry Potter era apenas um best-seller, não um case de marketing -- e não conseguiram passar da página 20. Sim, claro, a prosa da autora é banal; e claro, claro, nem tudo tem uma lógica perfeita na história. Mas quem teve a sorte de ser fisgado pela magia de Hogwarths não se deixou abater por esses detalhes; o que J. K. Rowlings oferece compensa, de sobra, o que eventualmente lhe falta.

Como já se previa no volume anterior, o novo começa com o triunfo das forças do mal. Voldemort toma o Ministério da Magia e loteia os cargos públicos entre seus aliados; os criminosos escapam da prisão; a imprensa fica sob censura e uma tenebrosa limpeza étnica toma curso. Harry, Hermione e Rony, em fuga constante, são a última esperança, não só do mundo dos bruxos, mas também do mundo dos trouxas.

Mais uma vez, há muitas lições embutidas no que, à primeira vista, é apenas uma fantasia. Agora J. K. Rowling expõe seus leitores ao lado sinistro dos regimes totalitários e à falta de argumentos (e de humanidade) do racismo. Um de seus grandes méritos é, justamente, não subestimar a inteligência e a sensibilidade dos seus jovens leitores.

Ainda assim, confesso que não tinha grandes expectativas em relação a esse livro: primeiro, porque a ação não se passa em Hogwarths, que adoro; segundo, porque o final era mais do que previsível. O que ainda poderia acontecer? O que ainda havia por inventar? Para minha surpresa, muita coisa: a imaginação de J. K. Rowling é portentosa. Só não considero “Harry Potter e as relíquias da morte” o melhor livro da série porque há um salto de 19 anos mais do que dispensável no fim, infeliz e açucarada concessão ao “Happy End” hollywoodiano.

* * *

Como a cada novo lançamento, discute-se, por toda a parte, se Harry Potter criou novos leitores e se é ou não apenas um modismo. Ora, o que Harry Potter fez pelo livro, nesses tempos de internet, foi um verdadeiro milagre. É claro que nem todos que leram a série conservarão o hábito da leitura; há quem goste de ler e há quem não goste, simples assim. Por outro lado, não tenho dúvida de que muitas crianças que nunca pensaram em livros como diversão mudaram radicalmente de idéia, e andam devorando toda a espécie de literatura.

E não, a série definitivamente não é um modismo. Não é qualquer um que tem o dom de criar um mundo tão convincente e fascinante quanto o desses livros. Independentemente do que se diga a respeito de suas qualidades estilísticas, J. K. Rowling é uma escritora extraordinária, capaz de pegar o leitor pela imaginação e não soltar mais. Honestamente? Tenho inveja das gerações e gerações de crianças que, um dia, vão ler Harry Potter pela primeira vez.

* * *

Há nove anos Preci Grohmann, médica e professora aposentada, cuida dos bichos do Parque Lage, sobretudo dos gatos abandonados: castra-os, vacina-os, encaminha-os para adoção, dá-lhes comida, atenção e remédio. Embora esta cidade tenha uma suposta Secretaria de Proteção e Defesa dos Animais, é assim que funciona, na vida real, o trato dos bichos sem teto, “adotados” por voluntários que cumprem, com grande sacrifício, o dever do estado. Como a maioria dos protetores da cidade, Preci já desistiu de obter qualquer ajuda oficial, e se daria por satisfeita se, pelo menos, a deixassem trabalhar em paz. Existem gatos no Parque Lage há mais de 30 anos e, em 2004, o Ministério Público, depois de vistoria, autorizou a sua permanência no local, determinando pontos de alimentação e autorizando a construção de uma pequena proteção para a comida e para os animais atrás dos banheiros; também foi oferecido a Preci o uso de uma parte do antigo galinheiro da mansão. Ao longo desses anos, ela se dedicou não apenas aos gatos, mas a gambás, macacos, ouriços, morcegos: qualquer bicho em apuros podia contar com sua pronta atenção.

Eis que, há três anos, um decreto presidencial anexou o Parque Lage ao Parque Nacional da Tijuca. Embora a anexação não tenha sido ainda regulamentada na Secretaria de Patrimônio da União, o burocrata de plantão no PNT, um certo Ricardo Calmon, já começou a perseguir os gatos. Entende-se: expulsar uma pessoa que só faz o bem e uma pequena colônia de felinos é muito mais fácil do que evitar os assaltos nas trilhas, combater a favelização da mata e a caça de animais silvestres, hobby de humanos boçais tão abertamente praticado no Parque, que até parece permitido.

* * *

Última chamada para ”Dentro do mar tem rio”, o lindo show de Maria Bethânia em cartaz até domingo, no Canecão. A casa, com uma infinidade de cadeiras a mais, está parecendo a classe econômica da Pluna, mas o prazer de encontrar o Brasil singelo e bonito que Bethânia canta compensa qualquer coisa: para essa viagem necessária e encantadora, recomendo até o bagageiro.


(O Globo, Segundo Caderno, 16.8.2007)

Nenhum comentário: