30.8.07


Notícias do Irineu:
o inferno são os outros

Amanhã faz um mês que Irineu, o gato temporário, foi lá para casa. Nesse ínterim, uma quantidade surpreendente de leitores se ofereceu para adotá-lo: recebi dois ou três telefonemas, muitos emails e algumas cartas. Sim, há quem se comunique através de cartas, manuscritas ainda por cima -- fico muito comovida. Mas mais comovida fiquei, de verdade, ao ver tanta gente interessada por um simples gatinho de rua. Essas mensagens foram um antídoto contra as denúncias de descaso e de maus-tratos que habitualmente lotam a minha caixa postal.

Acontece que, como outros gatos temporários antes dele, o Irineu veio para ficar. Ele sabe como conquistar uma mulher: cuida das minhas unhas, que mordisca para que fiquem bem bonitas e, quando me espicho no sofá, aninha-se perto da minha cabeça para dar um trato nos cabelos, que penteia e puxa com os dentes. Seu estilo de hair styling é meio radical, mas é muito bem intencionado.

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Passados 30 dias, Irineu é outro gato. A pata machucada e fedorenta ficou curada, e acho até charmosinha a falha que lhe ficou nos dedos, onde uma das unhas se foi de vez. Depois de uma semana de cuidados intensivos, a cistite passou, os vermes foram eliminados e não há sinal de fungo nas orelhas. Ele cresceu, ganhou peso e deixou de ser pêlo e osso -- agora tem carninhas até entre a espinha e as costas, e não parece mais um dragão espetado quando toma banho. E, como já se lava sozinho, nem precisa mais de banho.

Com a saúde recuperada, porta-se como todo gato de sua idade. Corre atrás de bolinhas de papel, briga com os tapetes, escala tudo o que é escalável. Gosta particularmente da janela do quarto, onde uma família de pombos se especializa em provocar os gatos; graças à rede lá instalada, todos ficam a salvo.

Irineu adora frango e carne moída, tem um fraco por leite e presunto, mas se alimenta, a contragosto, de ração. Manifesta enorme interesse por qualquer coisa que eu ponha no meu prato. Já provou alface, manga, fígado, banana e gelatina diet, mas não gostou..

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Ele estaria levando a vida que pediu a Bastet, não fosse pela presença da Famiglia Gatto na casa onde aterrissou. Para a Pipoca Siamesa, sua presença tanto faz quanto tanto fez: Pips é reservada, os assuntos do mundo não lhe dizem respeito. Keaton dá discretas mostras de aceitá-lo. Netcat, Tati e Tutu fazem o que podem para ignorá-lo, mas isso nem sempre é possível, já que um dos seus maiores prazeres é dar botes em quem passa distraído, seja bípede ou quadrúpede. As véinhas, que já esqueceram que faziam a mesma coisa quando pequenas, reagem indignadas, aos gritos e patadas. Ele corre para longe e faz aquele ar dramático de bicho incompreendido. O Mosca, porém, não tem paciência com essas coisas. Os dois já tiveram discussões sérias, e agora se evitam, diplomaticamente.

O grande problema chama-se Lucas. Como todos os siameses, ele é possessivo e ciumento, e não aceita a presença daquele estranho que, ainda por cima, teve o desplante de roubar tanto da minha atenção. Pouco importa que, no mais das vezes, a atenção tenha se traduzido em remédios ou curativos.

No domingo, Lucas não conseguiu mais represar os sentimentos, e atirou-se sobre o Irineu com instintos assassinos. Foi um autêntico arranca-rabo, que só não teve conseqüências mais sérias porque a arma antigato (um esguicho de molhar plantas) estava ao meu alcance. Ainda assim, o chão da área da refrega ficou igual a um galinheiro, cheio de tufos arrancados. Não tenho esperança alguma de que esses dois se entendam. Não pelo Irineu, que é de paz, mas pelo Lucas, que não pode fazer nada em relação à sua natureza.

De qualquer forma, esse filme já passou lá em casa há alguns anos, quando Lucas, que veio pequeno, cresceu e descobriu que a Keaton era o gato alfa da Famiglia. Durante muito tempo os dois brigaram como gato e gato, e até hoje trocam desaforos de vez em quando. Mas a gente vai levando; afinal, toda família grande tem suas confusões.

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Para o pessoal bacana que queria adotar o Irineu: não desistam de um gatinho só porque ele já encontrou um lar! Há gatos de todos os tipos e idades esperando o dia de ter um dono para chamar de seu. Passem lá no blog e deixem um recado em qualquer caixa de comentários, dizendo qual é o gato (quadrúpede!) dos seus sonhos. Tenho certeza de que logo aparecerá alguém com o bichinho ideal. Aos que não têm computador: podem me mandar cartas, que encaminharei às minhas amigas gateiras.

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A dica hoje é para quem gosta de romances policiais e nunca leu Dennis Lehane. O homem, que só descobri semana passada, é ótimo! Mas -- detalhe importante -- comecem por “Um drinque antes da guerra” e só depois leiam “Gone baby gone”. Se for possível, resistam de todas as formas a ler o final antes de chegar lá, ou perderão uma série de surpresas absolutamente imprevisíveis. Os dois foram publicados pela Companhia das Letras.

(O Globo, Segundo Caderno, 30.8.2007)

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