2.8.07


Entre a Idade Média e a banda larga

Gilberto Gil está prestes a entrar no palco montado na arena de touros de Zaragoza, Espanha. Lá, pouco antes, o público misturado de brasileiros e espanhóis enfrentara, com notável resignação, a apresentação de uma mocinha bonitinha, chatinha e bem intencionadinha, que cantou as dores do mundo e adormeceu meia platéia. De repente, ouve-se aquela voz burocrática que lembra aos espectadores que devem desligar os celulares, e que é proibido fotografar ou filmar o espetáculo.

Só que, na abertura de “Banda larga”, a voz informa que se pode filmar, fotografar e gravar à vontade. Como nos bons tempos do Grateful Dead, a arte é livre. Quando a cortina se abre, há, previsivelmente, um mar de câmeras, filmadoras e celulares clicando em frente ao palco. Aqui e ali ouvem-se os lamentos de quem deixou a máquina em casa.

A simples presença de Gil levanta o povo que cochilava nas cadeiras. Antes mesmo que ele abra a boca, todos já estão de pé, elétricos, aos pulos. A emoção dos brasileirinhos de Zaragoza é contagiante e comovente; ali eles estão de novo em casa, dançando e cantando o que conhecem, na língua em que cresceram. Os espanhóis demoram um pouco a pegar, mas logo entram no clima. Festa total. Gil conversa com a platéia em castelhano; em dado momento, embatuca numa palavra, pede ajuda aos brasileiros. O socorro é imediato.

-- Quando eu contar lá em casa que corrigi o ministro da Cultura, ninguém vai acreditar! – vibra uma garota, deslumbrada.

Muitos dos vídeos e fotos produzidos pelo público durante a turnê, que começou em Aveiro em 6 de julho e termina em Marciac em 6 de agosto, pipocam pela internet, no You Tube, no Flickr, no Fotolog e na própria página de “Banda larga”, no vaivém que é a essência da rede, e que Gil compreendeu como poucos.

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No dia anterior, em Valencia, eu estava trancada num centro de convenções gigantesco, dividindo a banda mais larga que já encontrei na vida com cerca de seis mil pessoas, num acampamento nerd chamado Campus Party. Lá havia de tudo, de gente construindo pequenos robôs engenhosos a desenvolvedores de jogos e aplicativos, passando pela vasta maioria a quem só interessavam mesmo os games e a velocidade alucinante com que se podiam baixar coisas.

Tudo completamente século XXI, das máquinas poderosas ao combustível dos pilotos: alguns chegavam a montar as latinhas vazias do Red Bull que os mantinha pilhados em torres imensas e estruturas complexas. A qualquer hora do dia ou da noite em que se entrasse num dos dois pavilhões, havia gente conectada; a idéia geral era deixar para dormir depois, quando se voltasse para casa. Campeonatos eletrônicos se sucediam, celulares e computadores eram hackeados diligentemente.

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As quatro horas de estrada que separam Valencia de Zaragoza atravessam o coração rural da Espanha. A paisagem, imemorial, é a mesma que se vê, com poucas variações, em séculos de pintura, das iluminuras caprichosamente pintadas pelos monges da Idade Média às telas de Van Gogh: campos infindáveis de feno, girassóis a perder de vista, o céu azul de doer. Fora da estrada, o silêncio é tão poderoso quanto o sol. Há pássaros, às vezes, mas a sensação predominante é a de uma estranha suspensão do tempo. Nossos ouvidos urbanos não estão mais acostumados à terra em estado bruto, ao ar parado em que não se ouve sequer o farfalhar de uma folha.

Os campos são pontilhados por velhas casas de pedra abandonadas e pequenas aldeias fantasma. Essas são as testemunhas mais eloqüentes das mudanças que aconteceram no século passado. Onde antes eram necessárias dezenas de pessoas para cuidar da terra, hoje basta meia dúzia de operadores de máquinas. Perdeu-se em poesia, ganhou-se em produtividade. Não se pode ter tudo.

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Castelos em ruínas enfeitam o alto dos montes. O mais espetacular é o de Daroca, onde parte das muralhas que cercavam a cidade ainda está de pé. Um habitante do século XV não notaria grande diferença no traçado das ruas e na disposição das casas, e penso como será passar a vida nesse povoado onde o tempo parou. Fico com a impressão de que não há televisão ou internet capazes de romper a barreira das muralhas, das cabeças e das almas, da vida pequena, das casas habitadas por gerações e gerações consecutivas, da repetição infinita do trabalho do campo. A beleza da vista lá do alto é de tirar o fôlego, já bastante reduzido pela subida íngreme num calor de 40 graus. Aproveito a ocasião para agradecer ao Todo Poderoso por não ter nascido lá.

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Saí na quinta-feira de Valencia, assisti ao show do Gil e voltei de Zaragoza na sexta. O que era para ser apenas uma quebra na rotina da Campus Party acabou virando uma viagem metafísica. Eu ainda estava pensando em quantos séculos atravessei naqueles dois dias, em quantas centenas de anos foram devoradas pelas instruções lacônicas do GPS do carro – “a duzentos metros prepare-se para virar à esquerda”, “siga em frente”, “saia pela saída” – enquanto subia a ladeira que levava à Feira de Valencia, situada num bairro de periferia.

Ao lado do cemitério, na rua tinindo de limpa, vizinhos conversavam em cadeiras dispostas na calçada. Um vira-lata dormia no chão, dois gatos olhavam de longe e, no céu, os primeiros contornos de uma lua quase cheia prometiam uma noite linda.

Cumprimentei as pessoas com um aceno de cabeça, como se fazia antigamente, virei a esquina e entrei no prédio frio e monumental da Feira. Estava de volta ao século XXI.

(O Globo, Segundo Caderno, 2.8.2007)

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