7.4.06



Abre o olho, eleitor!

Do alto desta página, uma tremenda tendinite vos contempla: minha mão direita encontra-se em petição de miséria, aprisionada numa tala que praticamente impede que eu digite essas mal tecladas -- e não só pelo incômodo, mas também pelo estranho fato de que, aparentemente, preciso dos pulsos para pensar. É como se ela fosse um firewall de sinapses: qualquer troca de idéias de mim para comigo mesma esbarra na munhequeira horrenda e me deixa lesa e incoerente. Passo pois a palavra ao colega e amigo querido Paulo Henrique de Noronha, que, com os pulsos em perfeito estado de funcionamento, me mandou um ponto de vista muito interessante sobre a famigerada dança da deputada Ângela Guadagnin, a que me referi semana passada:

"Acho que a imprensa e a opinião pública em geral estão com um olhar deturpado sobre a deputada Ângela Guadagnin", escreve ele. "Na minha visão dos fatos, acho que ela foi coerente e, desta forma, por mais incrível que pareça, foi honesta ao comemorar a absolvição do João Magno. Afinal, ela lutou por isso e, ao contrário da opinião pública e do bom senso, acredita que ele deva ser absolvido, até mesmo que é inocente.

Desonestos, a meu ver, são os mais de 200 deputados que absolveram o ?ilustre colega?, que continuam protegidos pelo voto secreto e que não comemoraram sua absolvição. Ora, se eles acreditavam de fato na inocência do petista, deveriam ter também comemorado. Entretanto, creio que esses deputados, em sua maioria, preferem nem mesmo ser identificados como responsáveis pela absolvição do João Magno e de outros envolvidos.

Além disso, a deputada-sambista celebrou, a rigor, uma votação legítima da maioria da casa. E essa casa é a Câmara dos Deputados do Congresso Nacional do Brasil, onde trabalham mais de 500 parlamentares eleitos pelo voto direto do povo brasileiro em seus estados.

Sim, é verdade que a maioria do país provavelmente votaria de forma diferente de seus representantes no Congresso... Mas, formalmente falando, a alegre parlamentar apenas celebrou uma decisão legítima do Congresso Nacional. E vai ser punida por isso...

Acredito que, se ela for cassada, então todos os que votaram pela absolvição deveriam também ser cassados. Escárnio muito maior contra a opinião pública é a absolvição em si, não a simples comemoração sem graça de uma pessoa sem graça. Onde está o crime de se comemorar uma vitória legítima (ainda que a consideremos imoral)?

Para mim, estão fazendo da deputada bode expiatório para que o Congresso dê uma satisfação à opinião pública. E, com isso, ajude a opinião pública a esquecer que o Congresso vem absolvendo a maioria dos indiciados pelo Conselho de Ética da Câmara por envolvimento com as histórias desonestas e ilegais do Mensalão.

O pior é que muitos dos deputados protegidos pelo voto secreto votarão agora pela cassação da efusiva colega, que votou igualzinho a eles pela absolvição do João Magno. O crime de absolver um deputado sabidamente envolvido com o Mensalão é de mais de 200 pessoas, mas só uma se meteu a gaiata e extravasou sua felicidade em público. Por isso, dane-se ela, que pague o pato. E deixe os demais soltos para novas votações secretas e novas absolvições indecentes, porém 'legítimas', rigorosamente dentro da lei."

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PH, que é como todos conhecem o Paulo Henrique, tem razão, e aponta um dilema moral complicado: quem é mais canalha, o safado que comemora a safadeza bem-sucedida, ou o que dela foi cúmplice mas, com ar compungido, faz de conta que tudo aconteceu à sua revelia? Enquanto existir no Congresso esta excrescência que é o voto secreto, fico com a segunda opção; mas não mudo de opinião a respeito da velha senhora indigna, a respeito de quem quanto mais fico sabendo, menos gosto.

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Mudando radicalmente de assunto: para quem ainda está amargurado com o sistema de "segurança" dos lindos CDs da Marisa Monte, recomendo Casuarina na veia. O grupo, que faz samba na letra da arte, lançou recentemente o seu primeiro CD, "Casuarina", pela Biscoito. Quando os deuses resolvem ser particularmente gentis com os cariocas, permitem que os rapazes se apresentem ao vivo, em geral no Rio Scenarium, a mais simpática das casas noturnas da cidade. Fiquem atentos: não é sempre que se encontra coisa tão fina.

E, por falar em coisa fina: envenenada com a política, agoniada com os impostos e infeliz com a dor da pata magoada, passei a semana mergulhada, mais uma vez, no bálsamo que é "Tudo dança", aquele CD cheio de graça que Zé da Velha e Silvério Pontes lançaram há alguns anos, e que cura qualquer dor. Falo de cadeira: apesar da tala, andei rodopiando muito pela casa, para espanto dos gatos.

A Rob Digital, independente responsável por esta jóia, é, aliás, uma daquelas gravadoras que merecem todo o apoio de quem gosta de música boa e de respeito com o público no mesmo pacote. Vale conferir seu website, onde também se encontram meus discos favoritos de world music -- levinhos, dançantes, todos coloridos, gostosinhos até como objetos. Só não me conformo com o nome da etiqueta, Putamayo, que mais parece epíteto para se soltar no Congresso; mas tudo bem.

Ninguém é perfeito.

(O Globo, Segundo Caderno, 6.4.2006)

Update: Dei um baita fora nesta coluna. A etiqueta dos disquinhos que eu tanto gosto chama-se Putumayo, e não Putamayo. Esta tendinite está me atrapalhando até onde não devia... Errei feio, vou corrigir semana que vem. Por outro lado, soube do seguinte: o Casuarina está se apresentando hoje e amanhã no Rio Scenarium. Se eu soubesse, teria avisado aos leitores do jornal; mas vocês, pelo menos ficam sabendo. Não dá pra perder, é uma felicidade só.

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