20.4.06



As trapaças da sorte e o feriadão na serra

E, de quebra, um trechinho de Vanessa Ornella, uma das autoras cult da cronista


Uma vez uns estudantes de jornalismo entrevistaram o Millôr. Fizeram perguntas sérias e graves, que ele respondeu, caracteristicamente, como se estivesse brincando; se algum dos entrevistadores parou para raspar o verniz da ironia, certamente encontrou algo bem mais profundo do que as palavras soltas no papel. A última pergunta foi clássica:

-- Que recomendação o senhor tem a fazer aos jornalistas que estão entrando agora no mercado de trabalho?

E o Millôr:

-- Tenham sorte.

A resposta ficou gravada na minha lembrança. Não acredito em muitas coisas, mas tenho uma fé inquebrantável na sorte -- embora, como todo mundo, muitas vezes não consiga distingui-la de imediato. Carrego sempre duas ou três inquietações metafísicas comigo, muito úteis para distrair o espírito das mesquinharias em que inevitavelmente mergulharia se estivesse ancorado ao dia-a-dia. A questão da sorte está sempre entre elas, talvez pelo fato de me considerar uma pessoa de grande, extrema sorte.

Não jogo na loteria porque não acerto nunca, já estive em Las Vegas nem sei quantas vezes levada pela minha vida profissional (as grandes feiras de informática e eletroeletrônicos sempre se realizaram lá) mas, ao longo de tantos anos, só consegui ganhar dois sorteios -- o último, por sinal, há poucas semanas: um lindo celular. A meu ver, porém, não é nas loterias que está a Sorte Grande, mas no moto-contínuo da vida, nas coisas que acontecem sem bilhetes ou apostas.

Agora mesmo, por exemplo, estava eu em casa posta em desassossego, colhendo das minhas queixas o amargo fruito, indignada com a tendinite que há semanas não me deixa chegar perto do computador, não me deixa andar de bicicleta, não me deixa ler na cama, não me deixa fazer nada.

Grande azar, certo? Errado: eis que amigos queridos me chamaram para o feriado em Petrópolis -- convite que, sem a supracitada tendinite, eu teria provavelmente declinado, amarrada, como sempre, à pilha de trabalho que me olha de soslaio do computador.

Com uma desgraciosa tala preta na pata, porém, impossibilitada de fazer o que quer que fosse, aceitei o convite feliz, sem qualquer dor na consciência -- e passei um fim de semana simplesmente delicioso, apreciando a rara arte de não fazer nada, conhecida pelos especialistas internacionais como dolce far niente. Em suma: baita sorte!

O pulso, agradecido pelo descanso forçado, melhorou consideravelmente. Tanto que, pela primeira vez em duas semanas, digito essas mal tecladas sem a tala horrorosa que me fazia companhia constante -- e, melhor ainda, sem qualquer dor. Sorte, muita sorte! :-)

* * *

Uma das minhas escritoras favoritas, cult mesmo, nunca publicou nada. Na verdade, sempre que lhe digo que há tempos não encontro voz tão original, ela acha que estou de gozação e não me leva a sério. Isso porque, graças a Deus, também não se leva a sério, qualidade essencial em 99% dos escritores. A moça é veterinária de profissão, mantém um blog onde descreve, entre outras coisas, as agruras da vida da mulher de 33 anos à procura de namorado na cidade do Rio de Janeiro, e chama-se (anotem o nome) Vanessa Ornella. Por acaso, calha de ser também uma lindeza, o que apenas prova como anda desantenado o homem carioca.Vanessa, que na internet atende por VanOr, passou o feriado em Mauá,onde descobriu uma novidade absolutamente revolucionária: a lentidão de caráter. Já que a retidão saiu de moda, esta pode ser a saída para os nossos males. Afinal, há ônibus até lá:

"A melhor lição dessa temporada em Mauá foi redescobrir o ritmo certo pra se viver: slooooooooooow. Nada de pressa, nada de pressionar o garçom a te atender: deixa essa gracinha vir no tempo dele, sem estresse. Deixa o fofo conversar. Lá vem o fofo: sinta o sorriso brotar, afaste os pensamentos ruins, diga "oi, fofo, estava esperando por você". Não vale a pena dizer por quantas horas e minutos. Em Mauá, o ritmo é lento. E o ritmo lento é o certo. E a comida? Ah, deixa a comida vir quando ela se sentir pronta e deliciosa. Sem estresse. As pessoas têm se esquecido de inspirar e expirar lentamente. E de contar até três mil antes de mandar alguém à merda. Por isso é importante retomar essa coisa da lentidão de caráter. Retidão de caráter já era, o lance agora é lentidão; a lentidão de caráter dá ao ser humano mais chances de acertar, desde que não se trate de uma emergência cirúrgica, mas esse tipo de coisa não acontece em Mauá -- e, se ocorre, o enterro é lindo,com buquês de copos-de-leite e ramos de cannabis sativa, duas semanas depois do óbito. Quem vive lento, vive e morre melhor."

Para ler mais do que esta delícia de pessoa escreve e para conhecê-la melhor, visite seu blog em vanor.notlong.com.

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