13.4.06



O Mal em cadeia nacional


Há tempo eu não via nada que me deixasse tão chocada quanto a entrevista da Richthofen ao "Fantástico". Não é dizer pouco: afinal, noite sim e outra também, os telejornais nos mostram o presidente que não sabe de nada, o prefeito, os governadores acasalados, os parlamentares, o ministro da Justiça que tem se mostrado tão safo criminalista, as ações do MST, o samba da deputada, a bandalha generalizada. Diante de ações que, coletivamente, matam, direta ou indiretamente, milhares de brasileiros, e que comprometem, irremediavelmente, o futuro da nação inteira, por que a visão de uma reles assassina, que representa ameaça apenas à própria família, me causaria tamanho horror?

A questão é que, apesar de estarmos diariamente expostos ao Mal, poucas vezes vemos o seu rosto. Quando uma cáfila de deputados rouba o dinheiro que permitiria a tantos brasileiros escapar da morte por fome ou falta de medicação, ou quando um governo inepto faz assistencialismo barato em vez de educar, associar essas ações criminosas às suas vítimas é praticamente impossível. A falta de comida, de escolas, de hospitais e daquele mínimo de dignidade que todo cidadão mereceria é um crime difuso, que não se pode atribuir, especificamente, a A, B ou C.

Mas quando uma mulher de 22 anos despudoradamente age como uma criança de 10 na intenção de passar por vítima do crime abominável que engendrou, vemos o Mal de frente, sem máscara ou disfarce. Alguém capaz de planejar e levar adiante a morte dos próprios pais, e tão cinicamente se apresentar na televisão, é alguém tão distante de qualquer coisa que se pretenda humana que não seria de espantar se subitamente lhe víssemos o rabo, os chifres e os cascos que a tradição popular associa ao inominável. É isso que nos enche de horror e que nos gela o sangue nas veias; tanto que a visão dos irmãos Cravinhos, com suas caras boçais, é menos chocante porque, apesar de executores do crime, eles mataram estranhos, e não, justamente, as duas pessoas que mais deveriam amar no mundo. Quando dois mandamentos sagrados como "Não matarás" e "Honrarás pai e mãe" são rompidos de uma só vez, e o oposto de tudo o que é divino se revela em forma humana, o terror se justifica não apenas por reafirmar a existência do Mal, mas por deixar claro o quão perto ele está de nós, e como pode passar despercebido.

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Há muito tempo, também, eu não via nada na televisão que me deixasse tão aliviada quanto a volta da Richthofen à prisão — de onde, se houvesse justiça no Brasil, ela não sairia tão cedo. Resta agora prender seus advogados. Se isso for impossível, porém, rogo-lhes uma antiga praga:
Que lhes caiam todos os dentes da boca, menos um, que há de doer terrivelmente.

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Levei um merecido puxão de orelha do Alexandre Sodré a respeito dos disquinhos de world music que elogiei semana passada... com nome errado! A etiqueta não se chama Putamayo, como escrevi, mas Putumayo, com "u". O fato de eu ter dito que isso mais parecia epíteto para se lançar sobre o Congresso Nacional não melhorou as coisas para o meu lado:
"Esse selo sempre coloca no mercado discos irresistíveis de world music. Aqui na Alemanha, onde moro, minha salvação para comprar bons CDs sempre é procurar o seu balcão. Não esperava algo assim vindo da senhora. Espero pelo menos que melhore de seu punho e esteja menos implicante na próxima semana!"
Obrigada pelos votos de melhoras, Alexandre, e desculpe pelo erro. Se minha mão já estivesse boa, eu iria agora mesmo para o quadro-negro e escreveria cem vezes:
"Não devo confundir Putumayo com Putamayo."
Infelizmente, a coluna de hoje está sendo mais uma vez digitada a duras penas. Literalmente. Assim, deixo o quadro-negro para uma próxima ocasião.

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Os gatinhos da foto são uma espécie de exorcismo contra o Mal. Reparem só como os rabinhos fazem um coração no ar: é uma justa declaração de amor à pessoa extraordinária a quem devem a vida e a felicidade.


(O Globo, Segundo Caderno, 13.4.2006)

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