27.4.06



Esqueletos no armário

A morte da Panair, a agonia da Varig e a torcida da cronista por uma equipe cheia de garra e valor


No dia 16 de dezembro do ano passado, postei uma nota no blog. Nela reproduzia, basicamente, um email de Daniel Sasaki, autor de "Pouso Forçado", de quem não tenho porque duvidar:

"Em entrevista à Folha de ontem, o vice-presidente da República e ministro da Defesa, José Alencar, disse que "há um sentimento nacional em relação à Varig. (...) A Varig foi a companhia que primeiramente começou a voar para Nova York, Tóquio, Londres, Frankfurt, Roma e Paris". Esqueceu-se o senhor ministro que foi a então gigante Panair do Brasil essa sim, venerada e celebrada em prosa e verso que abriu as primeiras linhas internacionais para o país, em 1946. Esqueceu-se também que, em ato ilegal e autoritário, o governo militar, em 1965, cassou, sem aviso prévio ou direito de defesa, as concessões da Panair transferindo-as para a Varig, então coadjuvante no palco da aviação comercial brasileira, que, convenientemente, como se já estivesse avisada, assumiu no mesmo dia as rotas européias daquela companhia. Esqueceu-se, por fim, o vice-presidente, do fato mais curioso nessa história toda: em cinco dias, o governo decretou a falência da Panair sem que houvesse um título protestado, débito vencido ou atraso nos salários dos empregados. Coisas da História que caem no esquecimento."


"Pouso Forçado", publicado pela Editora Record, é uma emocionante tentativa de tirar desse esquecimento a tragédia da Panair, contando como ela foi pilhada e assassinada pelos militares. É leitura fascinante e, ironia do destino, muito atual. Para os que amam a Varig só por amar, como eu, é também leitura amarga: descobrir que a empresa do nosso coração nasceu deste assassinato é um choque e tanto.

O que se deduz do livro de Sasaki é que a história da Varig está muito mal contada. Há mistérios policiais por trás do ato arbitrário (e criminoso?) do Brigadeiro Eduardo Gomes, que largou o pijama em casa para assumir o ministério da Aeronáutica e abater a Panair em pleno vôo; houve uma gigantesca e sinistra maracutaia na decolagem da Varig, e há um quê de justiça divina (ou diabólica) na ânsia com que agora as outras companhias aéreas observam a sua agonia, como aviões de carniça.

* * *

Mas, como eu disse, amo a Varig. A empresa que vive no meu coração não é da história mal contada, mas a dos comissários e comissárias de bordo, dos pilotos e co-pilotos, do pessoal de terra -- esses meus conterrâneos sempre tão dedicados, amigos, competentes. É a Varig da linda comissária Eliane Lameirão, que ainda anteontem me serviu uma deliciosa refeição de bordo em pleno programa do Jô, num carinho inesperado nascido da minha descarada paixão por comida de avião.

Não foram eles os culpados pelo pecado original da companhia que, apesar de tudo, conquistou a afeição dos seus usuários e acabou se transformando em orgulho nacional. Também não foram eles os culpados pela sua derrocada. Quando estive em Budapeste no ano passado senti um peso no coração ao virar uma esquina e, subitamente, dar de cara com uma loja abandonada com o nome Varig lá no alto. Todo encardido.

Nada tenho com a Varig exceto um punhado de milhas, mas aquela loja me abalou e mexeu num ponto sensível da minha alma viajante. Uma loja da Varig fechada lá fora é como uma embaixada abandonada, triste de se ver. Com a diferença que, para entrar numa embaixada, tomar cafezinho e bater dois dedos de prosa na língua da gente é preciso conhecer alguém no Itamaraty, ao passo que as lojas da Varig sempre estiveram de portas abertas para todos os brasileiros no exterior. Entrar num de seus aviões depois de dias ou semanas em outro país é como o Brasil estar vindo ao nosso encontro, para nos trazer de volta para casa.

* * *

Fica claro que tenho sentimentos ambivalentes em relação à sua atual situação. Meu lado lógico e racional acha que o mercado deve seguir seu curso, mas meu lado emocional discorda radicalmente do mercado desde o dia em que a AT&T demitiu 20 mil funcionários e suas ações dispararam na bolsa. Havia aí uma perversidade com a qual até hoje, passados dez anos, não consegui fazer as pazes moralmente.

Com toda a franqueza, não sei se o governo deve ou não manter distância da questão; minha cabeça tem razões que meu coração não reconhece. Por outro lado, o governo tem razões que não há cabeça que entenda, até porque cabeça é o que, aparentemente, ele menos usa. O Brasil precisava mesmo mandar aquele astronauta insuportável para o espaço? E precisa mesmo financiar o equivalente a nove viagens da Terra à Lua só em combustível para os deputados, sem deixar unzinho que seja por lá?

O fato é que, diante de desperdícios tão óbvios e estapafúrdios, dar uma chance à Varig não me parece coisa que mereça a carranca que faz dona Dilma sempre que fala no assunto.

Enfim, será o que Deus quiser. Mas eu, de minha parte, estou, apesar dos pesares, torcendo de coração pela Varig e pelos seus indômitos funcionários.


(O GLOBO, Segundo Caderno, 27.4.2006)

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